"Os leitores extraem dos livros, consoante o seu caráter, a exemplo da abelha ou da aranha que, do suco das flores retiram, uma o mel, a outra o veneno." Nietzsche

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

VIDA PRIVADA E ORDEM PRIVADA NO IMPÉRIO


       O objeto da resenha ora apresentada é o ensaio de Luiz Felipe de Alencastro, publicado na coleção de quatro volumes, intitulada “História da Vida Privada no Brasil”, organizada por Fernando Novais. Vida privada e ordem privada no Império trata basicamente das relações entre as esferas do público e do privado no contexto do período do Império, da vida familiar, do cotidiano, dos costumes, das relações e contradições sociais, tendo como ideia e condicionante histórico básico de todo esse processo o escravismo, reconstruído, reabilitado e fundamentado no âmbito do Direito moderno no Império.

Com o declínio da atividade mineradora em Minas, Goiás e Mato Grosso, a atividade econômica teve sua orientação voltada para o litoral e o Rio de Janeiro  tornou-se o centro econômico, além de político, da colônia do Brasil. Após a independência, as câmaras e os juizados municipais representantes das regiões desfavorecidas com a nova ordem econômica e geopolítica sentiram-se contrariados, ocorrendo então o primeiro conflito entre o público e o privado no âmbito do Império. Uma das consequências desse processo foi o surgimento das rebeliões regenciais, pautadas em questões como o liberalismo, o centralismo imperial, a “liberdade individual e o pacto político do Estado Constitucional moderno” (p.16)
Sobre o privilégio privado, no capítulo subsequente, o autor sustenta que o privilégio de possuir escravos estava atrelado à “concepção da vida privada” (p. 16) e que esta, por sua vez, era intimamente ligada à vida familiar. No Brasil escravocrata, a ordem privada se contradizia à ordem pública. O escravo era propriedade, mas com a anuência da autoridade pública. Construído e reconstruído pelo Direito moderno no Brasil, o escravismo foi pedra basilar da ordem privada brasileira, fundamentando o “cotidiano, a sociabilidade, a vida familiar e a vida pública brasileira.” (p. 16) . Para o autor, essa é a ideia central do ensaio, a de que o escravismo não é herança dos tempos coloniais, mas uma espécie de compromisso para o futuro, dentro do contexto do Império e de sua pretensa projeção sobre a contemporaneidade.
Como o escravismo era totalitário, isto é, estava entranhado em toda a estrutura da sociedade, fazia-se mister o controle desse elemento (o escravo) potencialmente perigoso. Resumindo, o autor coloca que, independentemente da instabilidade, dos conflitos e oposições entre revolucionários e legalistas, durante as revoluções do Império, se respeitasse a  “ordem privada escravocrata” (p. 20).
O capítulo seguinte versa sobre a “hegemonia fluminense”, da posição destacada, influente e central que o Rio de Janeiro exercia na época, constituindo-se a capital política, econômica e cultural do Império do Brasil. O Rio de Janeiro era, nessa época, para Alencastro, uma grande “eclusa”, a porta de entrada do Brasil para o mundo, ao mesmo tempo em que “acomodava” os regionalismos num âmbito maior, agora verdadeiramente nacional. Era também parada portuária obrigatória para a rota que ligava o leste americano ao oeste, via oceano Atlântico, além de ser, regionalmente, o centro da economia.
O autor enfatiza o constante aumento populacional verificado nos censos desde a chegada da Família Real e da Corte, salientando a presença maciça da população de origem ou simplesmente africana, constituindo-se em uma cidade “meio africana”. Ao contrário dos Estados Unidos, onde já não mais existia, a escravidão no Brasil grassava, estando presente em todas as regiões do país e estruturas socioeconômicas, e também por isso era considerado potencialmente perigoso para a estabilidade monárquica.
A província do Rio de Janeiro exerceu considerável influência na política, ao concentrar os interesses escravagistas. Para Joaquim Nabuco, o Rio de Janeiro era a mais “reacionária” província do Império, em que “a escravidão estava politicamente organizada” (p. 30).
A maneira de falar do “carioca” – palavra usada já no Império e presente até hoje para denominar os habitantes do Rio de Janeiro – também influenciou todo o Brasil. O ”sotaque” carioca torna-se definido e perceptível em função da presença e influência do falar da Corte, exercendo um domínio no âmbito linguístico que tornou muito característica a fala carioca, presente já naquela  época, que ainda não era a do rádio e da televisão.
O Rio de Janeiro, enquanto centro comercial e portuário, assiste ao afluxo de pessoas, profissionais e mercadorias  advindos de todo o Brasil e do exterior, mormente a Europa, o que resultou em uma “europeização” dos costumes e hábitos. Com o fim do tráfico, houve um acúmulo e um retorno de capitais, antes despendidos na compra de africanos, que ensejaram um aumento nas importações e a entrada de diversos produtos, “duráveis, semiduráveis, supérfluos, jóias, etc.”( p. 37).
Juntamente a esse fluxo comercial, e apesar do estreitamento das relações comerciais com os Estados Unidos em função da corrida do ouro na Califórnia, as elites imperiais brasileiras tornaram-se decididamente “afrancesadas”. Esse “francesismo” estendia-se além da cópia dos costumes e modismos franceses, buscando assimilar também a vida rural francesa à realidade dos trópicos escravocratas. Esse “imaginário rural francês” chegava aos brasileiros através da literatura, pelos folhetins e romances franceses.
O ambiente e o sentimento francófilo ajudam a explicar a entrada e influência de três correntes de pensamento oriundas da França: o positivismo, o kardecismo e a homeopatia. Nesse ambiente efervescente do ponto de vista intelectual, não só as idéias estavam em ebulição e mudanças no Império, mas também a música.
A flauta, a rabeca e o violão eram os instrumentos europeus mais comuns no Brasil no início do século XIX. Outros instrumentos europeus mais sofisticados, como a harpa e o cravo, tinham menos espaço na cena musical do Império, sendo que o piano, nesse período, era praticamente desconhecido no Brasil. Mas, ressalta o autor, todos esses instrumentos e a música nesse período já estavam fortemente influenciados pelos ritmos “afro-brasileiros”, devido à onipresença da escravidão africana no Brasil.
Nos anos 1850 em diante há uma mudança na música por causa do aumento na importação de pianos, bem como de inúmeros outros bens de consumos, agora acessíveis devido ao fim do tráfico negreiro. O piano foi uma espécie de “mercadoria-fetiche” (p. 46) dessa época de mudanças políticas e econômicas, com valor agregado alto, sendo sinônimo de status social. Tão grande era a procura que a concorrência entre marcas estrangeiras resultou na instalação de grandes depósitos de pianos. Nesse sentido dos impasses da música imperial é que vários escritores e pensadores debateram, e Machado de Assis escreveu um conto que se tornou sintomático: “Um homem célebre”. Trata-se do drama  do pianista Pestana, que tem a ambição e o desejo de eternizar-se na memória musical ocidental, assim como seus ídolos Mozart, Beethoven e Bach. Tenta  compor como eles, mas o máximo que conseguia eram polcas que, apesar da sua frustração, eram populares.
O próximo capítulo fala sobre o carnaval. Nele, o autor discorre sobre a ruptura que separou a festa pública da festa privada. Nas festas menores encontravam-se variados tipos de dança, como a “cachuca”, a polca e a valsa. Porém, nas festas maiores houve uma separação por volta de 1840, da festa de rua, o “entrudo”, de caráter popular, com o carnaval de salão, branco e elitista. O carnaval de salão, dos clubes, era considerado mais civilizado e distinto socialmente, e ficou restrito a uma minoria que podia pagar o ingresso. A festa de rua, o “entrudo moleque”, ficou para o divertimento do público em geral, ao alcance das “cacetada da polícia” (p. 53).
            O tema do último capítulo do ensaio são os nomes dados aos brasileiros e seus motivos. Após a Independência houve a ocorrência de um movimento nativista e contrário a Portugal na escolha dos nomes dos brasileiros, havendo inclusive casos de “tupinização” dos nomes, como, por exemplo, o Visconde de Jequitinhonha, estadista do Império, cujo nome original era Francisco Gomes Brandão. A elite imperial tinha grande admiração pelos astecas, civilização pré-colombiana que aos seus olhos melhor encarnava o espírito pró-americano, sendo que inclusive o nome maçom de Dom Pedro I era Guatimozín, último imperador asteca.
            Logo após esse período, durante as revoluções regenciais, a mudança de nomes tomou outra significação. Não havia na época nenhuma lei que normatizasse a respeito desse assunto. Era fácil trocar de sobrenome e/ou colocar o sobrenome de mãe ou dos avós. Gradualmente, nesse período, os nomes cristãos foram sendo trocados por nomes gregos e romanos, como Sêneca, Sócrates, Júpiter Marte e Saturno, e depois franceses e ingleses, como Antuérpia, Philadelphia e Marilândia. Houve também, no contexto da imigração europeia, nomes relativos à Alemanha, como um tal de João Leão Bismarck.
            O ideário republicano no final do Império trouxe consigo nomes relativos aos republicanos americanos, como Jefferson, Franklin, Washington, e os nomes republicanos romanos, como Múcio, Mário, Cornélia, Caio e etc.
            Finalizando, o autor destaca que o câmbio constante de nomes no Império parece ter sido influenciado pelas diferentes movimentações das estruturas e camadas sociais. A elite senhorial e urbana escolhia nomes relativos ao indianismo ou ao nativismo, encontrados principalmente em romances e folhetins da época, ou nomes extraídos das civilizações clássicas greco-romanas. De outro lado, nas cidades, distantes do domínio e da influência senhorial e patriarcal, os pobres, os escravos libertos, as camadas populares de uma maneira geral, se sentiam livres para escolherem seus nomes da maneira que julgassem melhor, e, no geral, não copiavam ou utilizavam-se do registro nominal de seus antigos chefes e senhores, como uma espécie de resistência e exercício de esquecimento de seu passado recente de escravidão e dominação.  A proliferação de apelidos entre as camadas populares significava possivelmente uma substituição e uma adequação à crescente laicização da sociedade e das instituições, fenômeno já acentuado no final do Império. Esse é um período marcado pelo constante enfraquecimento da influência da liturgia católica no seio da vida privada no Brasil.
            Recomenda-se a leitura do ensaio de Alencastro porque se constitui em uma interessante e importante fonte de informação sobre o período correspondente ao Império no que se refere às tensões e diálogos entre as esferas do público e do privado, da vida familiar, dos costumes, da vida cotidiana, dos modismos e tendências socioculturais de uma sociedade em constante mudança e na busca por uma definição identitária. Para além do conhecimento histórico em si sobre o período e do detalhamento e riqueza de informações presentes no texto, o ensaio permite pensar uma série de problemáticas que hoje em dia se colocam e têm relação com o período analisado pelo autor. Através do estudo da vida e da ordem privada no Império pode-se tentar estabelecer paralelos históricos com o presente, ajudando na construção de ideias que permitam aclarar questões relativas ao público e ao privado, tão constantes e prementes para o Brasil contemporâneo.


ALENCASTRO, L. F. de. Vida privada e ordem privada no Império. In: NOVAIS, Fernando A. (Coord.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997-1998. p. 11-95, vol. 2.

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