"Os leitores extraem dos livros, consoante o seu caráter, a exemplo da abelha ou da aranha que, do suco das flores retiram, uma o mel, a outra o veneno." Nietzsche

sábado, 29 de janeiro de 2011

REVOLUÇÃO FARROUPILHA E MONUMENTOS: HISTÓRIA E REPRESENTAÇÃO

        A Revolução Farroupilha é seguramente a temática dileta da história do Rio Grande do Sul e da historiografia sul-rio-grandense. Não há assunto histórico que tenha sido mais estudado, mais teorizado, mais discutido, objeto dos mais diversos enfoques, opiniões e posicionamentos do que a Revolução Farroupilha, ou Guerra dos Farrapos, configurando-se, pois, central em todo e qualquer debate sobre a história do Rio Grande do Sul e nas polêmicas historiográficas que lhe são próprias.
            A afirmação e a constante rememoração deste episódio pelos segmentos sociais e intelectuais os mais diversos – tais como historiadores, literatos, artistas, políticos, e, da metade do século XX até a contemporaneidade, pelos Centros de Tradições Gaúchas (CTGs), por mídias diversas, como redes televisivas e jornais impressos, além, é claro, do cotidiano senso comum – ajudam a entender esta faceta da história e da formação identitária de um povo gaúcho supostamente herdeiro de um tipo heróico farroupilha e de seus ideais de bravura, altivez e coragem.
O caráter glorioso da Revolução continua sendo constantemente afirmado através das mais diversas manifestações, que podem ser, por exemplo, culturais e artísticas, como a música tradicionalista e os próprios CTGs, ou cívicas e comemorativas, como “20 de setembro”, a “Semana Farroupilha” ou ainda o hino rio-grandense, cantado com orgulho em escolas e universidades.
Como referido, a historiografia sul-rio-grandense produziu bastante sobre o tema da Revolução Farroupilha. Partindo desta constatação, outra se nos impõe: a de que foram vários os tratamentos conceituais impostos à Revolução e seus revolucionários em diversos períodos historiográficos ao longo da história do Rio Grande do Sul.
A Revolução Farroupilha é um exemplo em si, pois ficou, após o seu término em 1845, durante um bom tempo esquecida, sendo “reabilitada” a posteriori. Tome-se como exemplo a abordagem historiográfica feita ao movimento farroupilha sob os auspícios do republicanismo rio-grandense, ou, ainda, durante os anos 30, quando a questão da identidade nacional está em voga e acaba por carregar de roldão em seu bojo unificador a identidade sulina. Discutindo a questão do separatismo sul-rio-grandense, Gutfreind escreve que
Num crescendo, a partir de 1930, tornou-se insistente e sistemática a negação do separatismo e do platinismo, por parte dos sul-rio-grandenses em relação à Revolução Farroupilha. Porém, a ambigüidade está presente até os dias de hoje: negam-se aos farrapos desejos separatistas, mas, em vários momentos, principalmente de crises econômico-políticas, evocam-se os farrapos e sugere-se o separatismo do Rio Grande do Sul. (1998, p. 192).
            Temos, pois que, seguros do conhecimento de que este tema foi alvo de diversos tratamentos historiográficos, dar a palmatória ao reconhecimento de que a Revolução Farroupilha foi representada historiograficamente de diferentes maneiras, e continua a sê-lo. O caráter representacional de aspectos da história farroupilha pretende ser o fio condutor deste pequeno trabalho. Longe de negá-lo, procura-se estabelecer um diálogo entre o mesmo e as diversas áreas produtoras de discursos e representações sobre o conhecimento referente à Revolução Farroupilha.
            A utilização do conceito de representação na área dos estudos históricos relacionados à Revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul tem desenvolvimento ainda incipiente. De maneira semelhante ao resto do Brasil, os enfoques historiográficos que têm como caro o conceito de representação, mormente a História Cultural e a chamada Nova História Cultural, têm existência igualmente recente. No Rio Grande do Sul, uma das primeiras historiadoras a pensar mais detidamente neste conceito e na sua utilização foi Sandra Jatahy Pesavento. Segundo esta autora,
a incorporação de tal conceito marcou uma reviravolta na forma de os historiadores enxergarem o passado, redimensionando tanto o modo de pensar, as marcas ou os traços que este deixou, sob a forma de fontes, quanto a própria escrita da história. (2008, p. x).
A representação se configura na presentificação de um “algo” ausente, sendo um “estar em lugar de algo”. A representação “é tanto exposição e presença quanto ausência e referência a um outro distante. É, pois, ser e não ser, ou, no limite, é ser ela mesma e ser um outro.” (PESAVENTO, 2007, p. 3). Segundo Pesavento,

Conceito de que os historiadores se apropriaram, as representações deram a chave para a análise desse fenômeno presente em todas as culturas, ao longo do tempo: os homens elaboram ideias sobre o real, as quais se traduzem em imagens, discursos e práticas sociais que não somente qualificam o mundo como também orientam o olhar e a percepção sobre a realidade. (2008, p. x).

            Tem-se então como inegável a contribuição dos estudos culturais – que têm como uma de suas premissas teóricas a representação – na área da história em face de historiografias tradicionais e totalizantes, que se pretendem detentoras de paradigmas cientificistas absolutos e que ainda encontram respaldo inconteste na atualidade no seio de muitos setores (inclusive acadêmicos), como, por exemplo, a historiografia positivista e a marxista.
            Posto isso, propõe-se que a Revolução Farroupilha e seus desdobramentos históricos e historiográficos podem ser pensados sob o ponto de vista das representações, não deixando de considerar que o seu próprio constructo histórico pode ser entendido como uma série de representações que fazem a vez e o papel de realidade histórica candente e verdadeira.
            Os objetos de estudo possíveis de serem analisados são muitos, porém, aqui se definirá um em especial, presente de maneira imponente nas cidades gaúchas e em suas ruas, avenidas e parques: os monumentos públicos aos “heróis” farroupilhas. Há uma variedade grande de monumentos aos muitos “heróis” farrapos, mas, em razão do espaço, analisar-se-á apenas o dedicado a Bento Gonçalves, o qual se encontra na cidade de Rio Grande.
            O monumento público localizado nesta cidade, sob a forma de portentosa escultura, aqui entendida como representação de um referente pretérito, participa visualmente da construção de imaginário relacionado à épica farroupilha e a um de seus maiores expoentes: o líder farrapo Bento Gonçalves. A construção de um monumento com a magnitude estético-visual alcançada pelo dedicado à figura de Bento Gonçalves deve ser pensada com atenção levando em consideração condições históricas específicas e determinadas, quer sejam elas sociais, políticas, econômicas, artísticas ou culturais.
            Monumentos em homenagem a “heróis” ou a “grandes homens” e “grandes feitos” são comuns em praticamente qualquer sociedade. Inventam-se e constroem-se ídolos para se lhes render culto e homenagem. No Brasil isso não é diferente e, no Rio Grande do Sul, mais do que em outros estados brasileiros, essa realidade parece estar bastante presente, pois, além dos “heróis” brasileiros, temos também os “heróis” da Revolução Farroupilha.
O monumento em homenagem a Bento Gonçalves localizado em Rio Grande tem uma história peculiar e muito bem-datada. No ano de 1891 foi publicada em Porto Alegre uma Lei Governamental, que legislava sobre o destino dos despojos de Bento Gonçalves, então em poder da família, e ainda estabelecia um concurso para eleger a cidade gaúcha que apresentasse o melhor projeto para a construção de um monumento em homenagem ao finado e glorioso líder farroupilha. Dentre as várias cidades concorrentes, a que apresentou o melhor projeto foi Rio Grande, apesar dessa cidade, ironicamente, nunca ter sido reduto farroupilha, assim como Porto Alegre. O monumento, obra do reconhecido escultor português Teixeira Neto, é inaugurado em 1909.
            Em termos históricos, pode-se tentar entender a vontade aparentemente altruísta e interessada destas cidades concorrentes de possuir o direito de construir o monumento a Bento Gonçalves como uma intenção tenaz de demonstrar-se republicana, pois, à época do concurso, havia apenas poucos anos que a República tivera sido declarada no Brasil, em 1889, sendo que a mesma carecia de legitimidade em muitos setores sociais e em muitas regiões do Brasil.
            Entende-se então como natural que a exaltação de um líder como Bento Gonçalves como personagem heroico servia muito bem aos propósitos republicanos dos sul-rio-grandenses do final do século XIX e início do XX. O desafio – também político –, em nível nacional, era a construção e a consolidação da República, da Nação e de seus ideais. Sendo assim, pode-se interpretar o gesto da construção deste monumento como afirmação de uma identidade republicana.
            Além disso, os sul-rio-grandenses se autoproclamaram como os primeiros expoentes da ideia republicana ainda no Brasil imperial, fazendo menção obviamente à existência pretérita da “República Rio-Grandense”, que chegou a ser declarada durante a Revolução Farroupilha, no ano de 1836. Embora esta “República Rio-Grandense” fosse substancialmente diferente do que se constituiu como República em nível nacional, um “sentimento republicano” será reivindicado pelos sul-rio-grandenses para se estabelecer um pertencimento à ordem e ao ideário republicano brasileiro.
            A República brasileira precisava de herois, e o Rio Grande do Sul já tinha os próprios. Mas, para mais além de simplesmente inventar heroísmo e glória onde não necessariamente há, é preciso que esses sentimentos e essas construções imaginárias sejam expostos e efetivamente “existam”. As formas de existência são variadas. Elas podem existir e ser identificadas no discurso oficial, no discurso do senso comum, na memória coletiva e individual, na Literatura, nas Artes, nos anais históricos etc. No caso aqui analisado, a existência se dá sob a forma de monumentos públicos.
            A forma adquirida e atribuída a Bento Gonçalves em Rio Grande não é senão uma possível representação de como este personagem existe e existiu enquanto heroi e símbolo de um ideário pretensamente republicano, dentro do contexto histórico e das concepções políticas daqueles que idealizaram o monumento e levaram a cabo a sua construção, a fim de que fosse visto e lembrado por todos que com ele tivessem algum tipo de contato, qual seja, por exemplo, visual.
            A visualidade desta representação dá a ver, em primeiro lugar, a um objeto material com determinados atributos e valores estéticos. O caráter/valor estético desta representação específica, por si só, reúne uma série de elementos conceituais e analíticos que permitem pensar as concepções de mundo, as mentalidades e as preferências políticas da época em que esta representação foi idealizada e construída. Por exemplo, se se observa que a riqueza de detalhes e o apuro formal e classicista do monumento a Bento Gonçalves são uma característica pertinente a determinados padrões estéticos epocais, não se pode deixar de se considerar que esses já não são necessariamente os mesmos padrões orientadores para a construção de monumentos públicos na atualidade.
            Entende-se, então, a existência deste monumento como a representação de um “heroi” dentro do contexto do republicanismo no Rio Grande do Sul. Apesar de referir-se a um passado discutível do ponto de vista histórico e/ou historiográfico – pois não há consenso sobre o verdadeiro papel de Bento Gonçalves na Revolução Farroupilha, ou ainda, dentro das disputas de representações a que refere Chartier (1989), qual o caráter de Bento Gonçalves e de outros “herois” farroupilhas que permanece, se herois, bandidos, homens comuns (GOLIN, 1983) – esta representação continua a exercer determinado “papel” no presente, no imaginário, nas mentalidades e na construção e constituição identitária sul-rio-grandense.
            Hoje em dia não há mais uma discussão tão presente e tão efetiva sobre a República, porém, a questão das identidades, em contrapartida, continua em voga. Se se pensa o monumento a Bento Gonçalves como uma representação de algo que não está ou simplesmente não é, presentificando a ausência provável e possível de heroísmo, de altruísmo, de dedicação a uma causa magnânima e justa, de luta contra a tirania e a opressão – dadas as inúmeras contradições a que qualquer sujeito histórico está apto a assumir para seus contemporâneos e para a posterioridade – não se pode deixar de considerar que a grandiosidade e o simbolismo inerentes às formas monumentais da estátua/escultura sinaliza ao olhar contemporâneo outros valores a serem considerados para que se estabeleçam reflexões sobre o presente e sobre as questões em que estamos inseridos.
A Revolução Farroupilha, seus herois e seus ideais são tema de muitas discussões e foram e continuam a ser representados de diferentes maneiras, muitas conflitantes e contraditórias. Este é um tema que perpassa a história e a historiografia sul-rio-grandense, portanto, inevitável se faz a constatação de que é absolutamente necessário que se estude e se pense sobre a Revolução Farroupilha e seus “herois”, como Bento Gonçalves, mas não apenas sobre o conflito em si, porém, sobretudo, as maneiras como diferentes olhares e representações historiográficas se sucederam no tempo, em que consistia essa historiografia, quais eram seus fundamentos teóricos, e, por conseguinte, a que demanda histórica específica respondia essa historiografia glorificadora dos revolucionários farroupilhas, através de diversas representações.
Na atualidade, temos as nossas próprias demandas e questões que necessitam de um aporte histórico e de um “exame” do passado e de suas maneiras de existência no presente e de como esse passado atua neste mesmo presente; assim, a questão é a de como esse discurso e essas representações idealizadas e idealizadoras da Revolução Farroupilha como epopeia heroica participa e continua ativa na constituição identitária gaúcha e toma parte nas mais diversas configurações políticas, econômicas, culturais e sociais, que então afirmam suas identidades próprias e seus lugares sociais e axiológicos, através das representações de um passado que se pretende heroico, glorioso e que acaba servindo também de modelo para o presente.

 REFERÊNCIAS

CHARTIER, R. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, v.5, n. 11, p. 173-191, jan./abr. 1991.

GUTFREIND, I. A historiografia rio-grandense. 2. ed. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1998.
PESAVENTO, S. J. Introdução. In: PESAVENTO, S, J.; ROSSINI, M. S.; SANTOS, N. W. (Orgs.) Narrativas, imagens e práticas sociais: percursos em História Cultural. Porto Alegre: Asterisco, 2008.
______. Apresentação do dossiê História Cultural & Multidisciplinaridade. In: Fênix: Revista de História e Estudos Culturais. V. 4, Ano IV, n. 4. p. 1-5, out./dez. de 2007.
GOLIN, T. Bento Gonçalves: herói ladrão. Porto Alegre: LGR Artes Gráficas, 1983.

2 comentários:

  1. Muito bom , Rafael! Continua alimentando o teu blog assim, academicamente. Isso é currículo! Um beijo!

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  2. Eu amo o Edward do crepusculo!!!

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