"Os leitores extraem dos livros, consoante o seu caráter, a exemplo da abelha ou da aranha que, do suco das flores retiram, uma o mel, a outra o veneno." Nietzsche

sábado, 29 de janeiro de 2011

REVOLUÇÃO FARROUPILHA E MONUMENTOS: HISTÓRIA E REPRESENTAÇÃO

        A Revolução Farroupilha é seguramente a temática dileta da história do Rio Grande do Sul e da historiografia sul-rio-grandense. Não há assunto histórico que tenha sido mais estudado, mais teorizado, mais discutido, objeto dos mais diversos enfoques, opiniões e posicionamentos do que a Revolução Farroupilha, ou Guerra dos Farrapos, configurando-se, pois, central em todo e qualquer debate sobre a história do Rio Grande do Sul e nas polêmicas historiográficas que lhe são próprias.
            A afirmação e a constante rememoração deste episódio pelos segmentos sociais e intelectuais os mais diversos – tais como historiadores, literatos, artistas, políticos, e, da metade do século XX até a contemporaneidade, pelos Centros de Tradições Gaúchas (CTGs), por mídias diversas, como redes televisivas e jornais impressos, além, é claro, do cotidiano senso comum – ajudam a entender esta faceta da história e da formação identitária de um povo gaúcho supostamente herdeiro de um tipo heróico farroupilha e de seus ideais de bravura, altivez e coragem.
O caráter glorioso da Revolução continua sendo constantemente afirmado através das mais diversas manifestações, que podem ser, por exemplo, culturais e artísticas, como a música tradicionalista e os próprios CTGs, ou cívicas e comemorativas, como “20 de setembro”, a “Semana Farroupilha” ou ainda o hino rio-grandense, cantado com orgulho em escolas e universidades.
Como referido, a historiografia sul-rio-grandense produziu bastante sobre o tema da Revolução Farroupilha. Partindo desta constatação, outra se nos impõe: a de que foram vários os tratamentos conceituais impostos à Revolução e seus revolucionários em diversos períodos historiográficos ao longo da história do Rio Grande do Sul.
A Revolução Farroupilha é um exemplo em si, pois ficou, após o seu término em 1845, durante um bom tempo esquecida, sendo “reabilitada” a posteriori. Tome-se como exemplo a abordagem historiográfica feita ao movimento farroupilha sob os auspícios do republicanismo rio-grandense, ou, ainda, durante os anos 30, quando a questão da identidade nacional está em voga e acaba por carregar de roldão em seu bojo unificador a identidade sulina. Discutindo a questão do separatismo sul-rio-grandense, Gutfreind escreve que
Num crescendo, a partir de 1930, tornou-se insistente e sistemática a negação do separatismo e do platinismo, por parte dos sul-rio-grandenses em relação à Revolução Farroupilha. Porém, a ambigüidade está presente até os dias de hoje: negam-se aos farrapos desejos separatistas, mas, em vários momentos, principalmente de crises econômico-políticas, evocam-se os farrapos e sugere-se o separatismo do Rio Grande do Sul. (1998, p. 192).
            Temos, pois que, seguros do conhecimento de que este tema foi alvo de diversos tratamentos historiográficos, dar a palmatória ao reconhecimento de que a Revolução Farroupilha foi representada historiograficamente de diferentes maneiras, e continua a sê-lo. O caráter representacional de aspectos da história farroupilha pretende ser o fio condutor deste pequeno trabalho. Longe de negá-lo, procura-se estabelecer um diálogo entre o mesmo e as diversas áreas produtoras de discursos e representações sobre o conhecimento referente à Revolução Farroupilha.
            A utilização do conceito de representação na área dos estudos históricos relacionados à Revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul tem desenvolvimento ainda incipiente. De maneira semelhante ao resto do Brasil, os enfoques historiográficos que têm como caro o conceito de representação, mormente a História Cultural e a chamada Nova História Cultural, têm existência igualmente recente. No Rio Grande do Sul, uma das primeiras historiadoras a pensar mais detidamente neste conceito e na sua utilização foi Sandra Jatahy Pesavento. Segundo esta autora,
a incorporação de tal conceito marcou uma reviravolta na forma de os historiadores enxergarem o passado, redimensionando tanto o modo de pensar, as marcas ou os traços que este deixou, sob a forma de fontes, quanto a própria escrita da história. (2008, p. x).
A representação se configura na presentificação de um “algo” ausente, sendo um “estar em lugar de algo”. A representação “é tanto exposição e presença quanto ausência e referência a um outro distante. É, pois, ser e não ser, ou, no limite, é ser ela mesma e ser um outro.” (PESAVENTO, 2007, p. 3). Segundo Pesavento,

Conceito de que os historiadores se apropriaram, as representações deram a chave para a análise desse fenômeno presente em todas as culturas, ao longo do tempo: os homens elaboram ideias sobre o real, as quais se traduzem em imagens, discursos e práticas sociais que não somente qualificam o mundo como também orientam o olhar e a percepção sobre a realidade. (2008, p. x).

            Tem-se então como inegável a contribuição dos estudos culturais – que têm como uma de suas premissas teóricas a representação – na área da história em face de historiografias tradicionais e totalizantes, que se pretendem detentoras de paradigmas cientificistas absolutos e que ainda encontram respaldo inconteste na atualidade no seio de muitos setores (inclusive acadêmicos), como, por exemplo, a historiografia positivista e a marxista.
            Posto isso, propõe-se que a Revolução Farroupilha e seus desdobramentos históricos e historiográficos podem ser pensados sob o ponto de vista das representações, não deixando de considerar que o seu próprio constructo histórico pode ser entendido como uma série de representações que fazem a vez e o papel de realidade histórica candente e verdadeira.
            Os objetos de estudo possíveis de serem analisados são muitos, porém, aqui se definirá um em especial, presente de maneira imponente nas cidades gaúchas e em suas ruas, avenidas e parques: os monumentos públicos aos “heróis” farroupilhas. Há uma variedade grande de monumentos aos muitos “heróis” farrapos, mas, em razão do espaço, analisar-se-á apenas o dedicado a Bento Gonçalves, o qual se encontra na cidade de Rio Grande.
            O monumento público localizado nesta cidade, sob a forma de portentosa escultura, aqui entendida como representação de um referente pretérito, participa visualmente da construção de imaginário relacionado à épica farroupilha e a um de seus maiores expoentes: o líder farrapo Bento Gonçalves. A construção de um monumento com a magnitude estético-visual alcançada pelo dedicado à figura de Bento Gonçalves deve ser pensada com atenção levando em consideração condições históricas específicas e determinadas, quer sejam elas sociais, políticas, econômicas, artísticas ou culturais.
            Monumentos em homenagem a “heróis” ou a “grandes homens” e “grandes feitos” são comuns em praticamente qualquer sociedade. Inventam-se e constroem-se ídolos para se lhes render culto e homenagem. No Brasil isso não é diferente e, no Rio Grande do Sul, mais do que em outros estados brasileiros, essa realidade parece estar bastante presente, pois, além dos “heróis” brasileiros, temos também os “heróis” da Revolução Farroupilha.
O monumento em homenagem a Bento Gonçalves localizado em Rio Grande tem uma história peculiar e muito bem-datada. No ano de 1891 foi publicada em Porto Alegre uma Lei Governamental, que legislava sobre o destino dos despojos de Bento Gonçalves, então em poder da família, e ainda estabelecia um concurso para eleger a cidade gaúcha que apresentasse o melhor projeto para a construção de um monumento em homenagem ao finado e glorioso líder farroupilha. Dentre as várias cidades concorrentes, a que apresentou o melhor projeto foi Rio Grande, apesar dessa cidade, ironicamente, nunca ter sido reduto farroupilha, assim como Porto Alegre. O monumento, obra do reconhecido escultor português Teixeira Neto, é inaugurado em 1909.
            Em termos históricos, pode-se tentar entender a vontade aparentemente altruísta e interessada destas cidades concorrentes de possuir o direito de construir o monumento a Bento Gonçalves como uma intenção tenaz de demonstrar-se republicana, pois, à época do concurso, havia apenas poucos anos que a República tivera sido declarada no Brasil, em 1889, sendo que a mesma carecia de legitimidade em muitos setores sociais e em muitas regiões do Brasil.
            Entende-se então como natural que a exaltação de um líder como Bento Gonçalves como personagem heroico servia muito bem aos propósitos republicanos dos sul-rio-grandenses do final do século XIX e início do XX. O desafio – também político –, em nível nacional, era a construção e a consolidação da República, da Nação e de seus ideais. Sendo assim, pode-se interpretar o gesto da construção deste monumento como afirmação de uma identidade republicana.
            Além disso, os sul-rio-grandenses se autoproclamaram como os primeiros expoentes da ideia republicana ainda no Brasil imperial, fazendo menção obviamente à existência pretérita da “República Rio-Grandense”, que chegou a ser declarada durante a Revolução Farroupilha, no ano de 1836. Embora esta “República Rio-Grandense” fosse substancialmente diferente do que se constituiu como República em nível nacional, um “sentimento republicano” será reivindicado pelos sul-rio-grandenses para se estabelecer um pertencimento à ordem e ao ideário republicano brasileiro.
            A República brasileira precisava de herois, e o Rio Grande do Sul já tinha os próprios. Mas, para mais além de simplesmente inventar heroísmo e glória onde não necessariamente há, é preciso que esses sentimentos e essas construções imaginárias sejam expostos e efetivamente “existam”. As formas de existência são variadas. Elas podem existir e ser identificadas no discurso oficial, no discurso do senso comum, na memória coletiva e individual, na Literatura, nas Artes, nos anais históricos etc. No caso aqui analisado, a existência se dá sob a forma de monumentos públicos.
            A forma adquirida e atribuída a Bento Gonçalves em Rio Grande não é senão uma possível representação de como este personagem existe e existiu enquanto heroi e símbolo de um ideário pretensamente republicano, dentro do contexto histórico e das concepções políticas daqueles que idealizaram o monumento e levaram a cabo a sua construção, a fim de que fosse visto e lembrado por todos que com ele tivessem algum tipo de contato, qual seja, por exemplo, visual.
            A visualidade desta representação dá a ver, em primeiro lugar, a um objeto material com determinados atributos e valores estéticos. O caráter/valor estético desta representação específica, por si só, reúne uma série de elementos conceituais e analíticos que permitem pensar as concepções de mundo, as mentalidades e as preferências políticas da época em que esta representação foi idealizada e construída. Por exemplo, se se observa que a riqueza de detalhes e o apuro formal e classicista do monumento a Bento Gonçalves são uma característica pertinente a determinados padrões estéticos epocais, não se pode deixar de se considerar que esses já não são necessariamente os mesmos padrões orientadores para a construção de monumentos públicos na atualidade.
            Entende-se, então, a existência deste monumento como a representação de um “heroi” dentro do contexto do republicanismo no Rio Grande do Sul. Apesar de referir-se a um passado discutível do ponto de vista histórico e/ou historiográfico – pois não há consenso sobre o verdadeiro papel de Bento Gonçalves na Revolução Farroupilha, ou ainda, dentro das disputas de representações a que refere Chartier (1989), qual o caráter de Bento Gonçalves e de outros “herois” farroupilhas que permanece, se herois, bandidos, homens comuns (GOLIN, 1983) – esta representação continua a exercer determinado “papel” no presente, no imaginário, nas mentalidades e na construção e constituição identitária sul-rio-grandense.
            Hoje em dia não há mais uma discussão tão presente e tão efetiva sobre a República, porém, a questão das identidades, em contrapartida, continua em voga. Se se pensa o monumento a Bento Gonçalves como uma representação de algo que não está ou simplesmente não é, presentificando a ausência provável e possível de heroísmo, de altruísmo, de dedicação a uma causa magnânima e justa, de luta contra a tirania e a opressão – dadas as inúmeras contradições a que qualquer sujeito histórico está apto a assumir para seus contemporâneos e para a posterioridade – não se pode deixar de considerar que a grandiosidade e o simbolismo inerentes às formas monumentais da estátua/escultura sinaliza ao olhar contemporâneo outros valores a serem considerados para que se estabeleçam reflexões sobre o presente e sobre as questões em que estamos inseridos.
A Revolução Farroupilha, seus herois e seus ideais são tema de muitas discussões e foram e continuam a ser representados de diferentes maneiras, muitas conflitantes e contraditórias. Este é um tema que perpassa a história e a historiografia sul-rio-grandense, portanto, inevitável se faz a constatação de que é absolutamente necessário que se estude e se pense sobre a Revolução Farroupilha e seus “herois”, como Bento Gonçalves, mas não apenas sobre o conflito em si, porém, sobretudo, as maneiras como diferentes olhares e representações historiográficas se sucederam no tempo, em que consistia essa historiografia, quais eram seus fundamentos teóricos, e, por conseguinte, a que demanda histórica específica respondia essa historiografia glorificadora dos revolucionários farroupilhas, através de diversas representações.
Na atualidade, temos as nossas próprias demandas e questões que necessitam de um aporte histórico e de um “exame” do passado e de suas maneiras de existência no presente e de como esse passado atua neste mesmo presente; assim, a questão é a de como esse discurso e essas representações idealizadas e idealizadoras da Revolução Farroupilha como epopeia heroica participa e continua ativa na constituição identitária gaúcha e toma parte nas mais diversas configurações políticas, econômicas, culturais e sociais, que então afirmam suas identidades próprias e seus lugares sociais e axiológicos, através das representações de um passado que se pretende heroico, glorioso e que acaba servindo também de modelo para o presente.

 REFERÊNCIAS

CHARTIER, R. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, v.5, n. 11, p. 173-191, jan./abr. 1991.

GUTFREIND, I. A historiografia rio-grandense. 2. ed. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1998.
PESAVENTO, S. J. Introdução. In: PESAVENTO, S, J.; ROSSINI, M. S.; SANTOS, N. W. (Orgs.) Narrativas, imagens e práticas sociais: percursos em História Cultural. Porto Alegre: Asterisco, 2008.
______. Apresentação do dossiê História Cultural & Multidisciplinaridade. In: Fênix: Revista de História e Estudos Culturais. V. 4, Ano IV, n. 4. p. 1-5, out./dez. de 2007.
GOLIN, T. Bento Gonçalves: herói ladrão. Porto Alegre: LGR Artes Gráficas, 1983.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

OS HISTORIADORES E OS CONCEITOS

História
         Pode-se entender a História como o campo disciplinar que tem por objetivo entender e compreender o “homem” e as “sociedades” através do tempo. Pelo estudo do passado, buscam-se o entendimento das diversas configurações/esferas nas quais os homens vivem, sejam elas sociais, econômicas, políticas, culturais, etc, e de como o homem, enquanto “sujeito histórico”, interage dentro dessas configurações e se constitui identitáriamente. A História é a disciplina que estuda e problematiza o passado, partindo das questões que o presente do historiador suscita e impõe, analisando temporalmente as continuidades, as permanências, as rupturas, as transições e transformações que são pertinentes aos homens e às sociedades humanas.

Historiografia
      Historiografia é a área de estudos que tem por objetivo a análise e a reflexão sobre a produção intelectual referente à história ou a determinados temas históricos em tempo e lugares específicos. Uma “historiografia” pode ser considerada também como o conjunto das especificidades que caracterizam uma produção historiográfica, tais como a escrita, os temas, as tendências e os paradigmas teóricos pertinentes a uma dada historiografia.

Objeto de estudo
         Objeto de estudo em História é todo e qualquer documento, evento e situação ocorrida e/ou relativa ao passado que seja pertinente a um estudo histórico. Sendo, portanto, em sentido lato, o passado o objeto de estudo da História, procuram-se as especificidades deste passado, em que consiste, como se estuda, quais os limites epistemológicos desta objetividade, como essa objetividade se relaciona com os instrumentos de pesquisa de que dispõe o historiador e com sua própria subjetividade, e de quais são as condições de existência, apreensão e compreensão desse passado objetivo.


OS HISTORIADORES E OS ACONTECIMENTOS


Os historiadores atribuem diversos sentidos aos acontecimentos históricos. Os exemplos são vários. De uma maneira geral, a noção de acontecimento parece ser fundamental para a história ser passível de ser pensada e enquanto forma de conhecimento válido, não podendo ser simplesmente descartada. Para os historiadores da Escola Metódica, a noção de acontecimento exercia um papel central na concepção e na escrita da história. O acontecimento era o conceito principal, em torno do qual se organizava uma narrativa linear, cronológica e evolutiva. Para esses historiadores, o acontecimento, acessível objetivamente através dos documentos, fornecia a chave para a compreensão da história, esta majoritariamente centrada nos acontecimentos políticos e nos grandes personagens.
Esse paradigma de história “acontecimental” (événementielle) foi duramente criticado pelos historiadores dos Annales, que legaram ao acontecimento um papel, se não secundário, ao menos superficial para a compreensão histórica. O interesse se desloca dos acontecimentos em si para uma tentativa de entendimento da história mais voltada para a questão das estruturas sociais e econômicas. O annaliste Braudel distinguia o tempo dos acontecimentos do tempo das conjunturas e estruturas (longa duração), sendo aquele fundamentalmente instantâneo, célere e superficial. Outro paradigma teórico importante é o marxismo, que considerará o acontecimento no contexto de uma totalidade e de um processo histórico, tendo como elemento principal não o acontecimento, mas a conflitualidade e a luta de classes.
Portanto, o acontecimento não deixou de ser considerado pela historiografia contemporânea. Nesse sentido, os eventos têm papel simbólico significativo, mas que varia de acordo com os princípios epistemológicos e teóricos de cada historiador e/ou historiografia. Para Paul Veyne (1995, p. 11) “a história é uma narrativa de eventos: todo o resto resulta disso”. Para este historiador a especificidade dos eventos e sua organização em tramas compreensíveis tem papel fundamental para a escrita da história. Os eventos estão, assim, simbolicamente situados em uma esfera de diferenciação que estabelece sobre um fundo de uniformidade.

IMPORTÂNCIA DA HISTORIOGRAFIA

A historiografia tem um papel fundamental para o historiador na contemporaneidade. Coetâneo ao ato de fazer história está o de pensar sobre o processo de escrita da história e da construção dos paradigmas teóricos e metodológicos que fundamentam a operação historiográfica. Para que o historiador esteja habilitado, teoricamente falando, a trabalhar com essa disciplina, seja na pesquisa e/ou na docência, é condição sine qua non o conhecimento e a reflexão acerca das formas diversas que a história, enquanto conceito e prática profissional, social, cultural e política assumiu através do tempo e das sociedades.
O conceito de história tem assumido significados e características diversas ao longo do tempo. Desde os gregos até o advento das filosofias da história no final do século XVIII, passando por positivistas, marxistas, Annales, pós-modernos, a história vem sendo pensada sob os auspícios das mais diversas concepções teóricas, sendo constantemente ressignificada e arranjada de acordo com os cânones teóricos e filosóficos, muitas vezes como objeto ao sabor das contingências várias, sejam elas disciplinares, epistemológicas, políticas, acadêmicas, pedagógicas, etc.

REPRESENTAÇÕES RACIAIS E IMIGRAÇÃO NA DÉCADA DE 20

Assistimos, na atualidade, a um número crescente de debates sobre cotas raciais, racismo, xenofobia, identidades, alteridade. Em meio a estas informações que nos provém dos mais diversos meios, ficamos muitas vezes propensos à quantidade de informação, em detrimento da qualidade, e à provável confusão de idéias decorrentes dessa multiplicidade. Muitos desses debates são bastante superficiais e carecem de uma fundamentação empírica e de um pensar sobre a história mais rigoroso, que abarque os vários questionamentos que inevitavelmente surgem.
Nesse sentido a leitura do artigo “Dos males que vêm com o sangue: as representações raciais e a categoria do imigrante indesejável nas concepções sobre imigração da década de 20” do professor e pesquisador da UFRJ Jair de Souza Ramos, pode nos ajudar a pensar esses debates de uma maneira mais consistente e segura. Em linhas gerais, o artigo versará sobre a questão da representação dos imigrantes considerados “indesejados” na década de 20 no Brasil, mormente os negros norte-americanos e os japoneses.
Na introdução o autor começa por fazer um breve apanhado do conjunto de políticas diplomáticas que o Brasil adotou desde meados do século XIX até o primeiro quartel do século XX, no sentido de um controle imigratório que privilegiasse raças consideradas “desejáveis” em detrimento de raças ou grupos imigratórios “indesejáveis”. A diplomacia se esforçava por construir no estrangeiro uma imagem positiva do Brasil a fim de se obter a mão de obra que “faltava”, dada a nova configuração de mão de obra, neste momento já livre, pois a escravidão já havia sido extinta.
A suposição corrente era de que no Brasil não existiriam conflitos sociais e raciais, o que seria positivo para o conjunto de imigrantes que, a exemplo dos europeus, para o Brasil aportavam com a perspectiva de refazerem suas vidas. Porém, como o autor salienta, a realidade é que esse esforço brasileiro, em uma primeira análise, se orientava dentro de uma perspectiva de branqueamento que excluía do processo imigratório a possibilidade de negros e asiáticos, por exemplo, usufruírem do direito à vinda ao Brasil. O autor se pergunta então quais eram os fundamentos reais dessas políticas, o que orientava e dava formas às representações do “indesejado”, porque da exclusão de raças “indesejáveis”, ou ainda, como e por quais razões determinados projetos de imigração envolvendo esses grupos foram duramente criticados no Brasil.
Ramos elege como eixo de análise especifico os desdobramentos de um caso ocorrido em 1921, envolvendo o projeto de um grupo de afro-americanos de se instalarem no Brasil. No primeiro capitulo, “Os limites do paraíso racial”, o autor escreve que, nos anos 20, a campanha brasileira para atração de mão de obra está a circular nos Estados Unidos, acabando por ser veiculada também em parte da imprensa negra. Os atrativos oferecidos chamaram a atenção de um grupo de negros norte-americanos de Chicago, que decidiram comprar terras no Mato Grosso, fugindo das leis racistas vigentes nos EUA.
Porém, essa iniciativa sofreu séria resistência no Brasil. A imprensa brasileira alardeou o caso, sustentando um suposto plano do governo norte-americano de enviar o seu contingente populacional negro para o Brasil, o que, na opinião da época traria prejuízos às tentativas de branqueamento da população brasileira. Surge então a pergunta: o que estava efetivamente por trás da recusa à imigração desse grupo? O autor sugere que outro motivo possível, além da ideologia do branqueamento, seria o de que a vinda dos afro-americanos traria consigo o ódio racial ao Brasil, que era considerado um lugar sem conflitos raciais.
  Para além da “opinião pública”, o debate sobre este projeto também teve repercussão no Congresso Nacional. Em função desse episódio, alguns parlamentares propuseram leis restritivas a qualquer tentativa de imigração negra para o Brasil. Essas leis não atingiriam apenas os negros, mas também os “amarelos”. Apesar da acolhida e dos debates no Congresso, essas leis não foram aprovadas, o que obrigou que as restrições se realizassem pela diplomacia. O autor considera esses projetos de leis, mesmo não aprovados, importantes para se apreender as representações dos negros norte-americanos como indesejáveis. A hipótese do autor é de que o maior temor seria o de que a importação do “ódio entre as raças” ameaçasse o controle social que a República se esmerava por manter, ainda que sob a premissa da superioridade branca e da submissão e subordinação dos negros.
No capítulo seguinte Ramos faz uma acurada análise de um inquérito elaborado em 1925 pela Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), que respondia a uma demanda das elites e dos setores rurais no sentido de sua posição difícil do ponto de vista da mão de obra no Brasil, que era considerada insuficiente e mal preparada. Na realidade, salienta o autor, a preocupação principal tinha mais a ver com um ideal de trabalhador, preferencialmente branco, europeu e “civilizado”, em detrimento das “raças inferiores”, negros e asiáticos. O estímulo à imigração branca traria resolução definitiva também para os problemas agrários do Brasil. Porém, havia uma série de dificuldades, tal como apontadas por Ramos em sua análise, para a atração de mão de obra branca, restando a alternativa à imigração japonesa.
O capítulo subsequente, “O debate sobre a imigração japonesa”, discute a polêmica envolvendo a imigração de japoneses e o simbolismo presente nas representações dessa população enquanto “indesejável”. Uma das objeções correntes era a de que o japonês seria inassimilável e poderia corromper o funcionamento da política eugênica em curso no Brasil. Os debates ocorriam também dentro da própria SNA, que tinha, contudo, opiniões divergentes entre seus membros sobre a questão do japonês. A disputa, que também ocorria no plano jurídico, permeou os debates e as representações dos “indesejáveis” durante esse período.
            O penúltimo capítulo fala sobre as diferentes posições acerca da imigração de negros e japoneses com base nas respostas ao inquérito do SNA. O autor aponta uma “lógica” das diferentes posições, que tinham em comum a identificação de três categorias que davam subsídio tanto às posições de rejeição quanto de aceitação. Essas categorias eram as de eugenia, civilização e assimilação.
            A primeira categoria se referia ao grau de eugenia dos povos imigrados. Para tal ponto de vista a imigração era um instrumento de regeneração da raça, ao introduzir uma população branca no Brasil. A segunda categoria se referia ao grau de “civilização” do imigrado, que era medido pela importância do país de origem do imigrado e pela associação “de povo imigrado” a uma disciplina para o trabalho, técnicas de produção, higiene e respeito à ordem legal. A terceira categoria era a de assimilação, no sentido de se deixar assimilar ao meio, à cultura e ao povo brasileiro.
            Para o autor, os temores eram muitos. A possibilidade de não-adaptação ou inassimilação, o conflito entre raças, considerado inexistente no Brasil. No caso dos norte-americanos, temia-se que um “comportamento agressivo” por parte dessa população pusesse fim à harmonia racial então supostamente vigente. O autor sustenta que, para além da suposta inferioridade racial dos negros norte-americanos a preocupação principal fundamentava-se na possibilidade de que não se “fundissem” ao “trabalhador nacional” e à “cultura brasileira”.
            No último capítulo do artigo, “Raça e imigração na Primeira República: a busca do ponto de mistura”, o autor argumenta que os debates sobre imigração e raça giraram em torno da possibilidade de “contribuição” a uma “mistura” física e cultural que redundaria na construção de um idealizado “tipo brasileiro”. O fundamento do conjunto de representações decorrentes da busca e construção desse ideal, de acordo com Ramos, estava no aumento do número de brancos. A consequência desse tipo de política racial foi a classificação de determinados grupos com base em hierarquias raciais que acabavam por impor desde a negatividade até a positividade extremas desses grupos, como os negros e os japoneses. O risco principal era de que à imigração de raças “indesejáveis” pusesse fim à harmonia entre as raças e aos pressupostos que fundamentavam a hierarquia racial e por conseguinte social, política e econômica decorrente dessas premissas.
            O artigo de Jair de Souza Ramos se configura em trabalho muito interessante para se pensar questões importantes da contemporaneidade. Além do rigor documental, da precisão e fluidez da escrita, as reflexões propostas pelo autor nos guiam e dão subsídios para alguns dos debates mais prementes, como a questão sempre corrente e atual do racismo, tanto no Brasil quanto e outros países; a ascensão de sentimentos e movimentos xenófobos em praticamente todo o planeta; os diversos conflitos de matriz étnica; enfim, a questão das identidades e da alteridade, tão cara ao pensamento contemporâneo.
            De um ponto de vista historiográfico fica evidente o domínio do tema e a desenvoltura do autor na exposição de temas muitas vezes considerados “espinhosos”, dado seu caráter polêmico, e a maneira como maneja as informações em um texto bem construído e coerente do ponto de vista argumentativo. Outro fator elogioso neste trabalho é a possibilidade de análise sempre muito rica em torno do conceito de representação. O texto tem como um de seus fundamentos a questão representacional na história e de como determinados grupos e/ou sujeitos históricos são esteorotipados e de como se constroem discursos com base nessas representações que constroem e legitimam hierarquias raciais, instituindo e definindo o Outro com base nos valores do Eu que não realiza o necessário “exercício de alteridade”. O artigo se configura leitura indispensável para pensarmos nossos dilemas e problemas contemporâneos.

RAMOS, J. S. Dos males que vêm com o sangue: as r. In: Marcos Chor Maio; Ricardo Ventura. (Org.). Raça, Ciência e Sociedade. 1 ed. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1996, p. 59-84.

VIDA PRIVADA E ORDEM PRIVADA NO IMPÉRIO


       O objeto da resenha ora apresentada é o ensaio de Luiz Felipe de Alencastro, publicado na coleção de quatro volumes, intitulada “História da Vida Privada no Brasil”, organizada por Fernando Novais. Vida privada e ordem privada no Império trata basicamente das relações entre as esferas do público e do privado no contexto do período do Império, da vida familiar, do cotidiano, dos costumes, das relações e contradições sociais, tendo como ideia e condicionante histórico básico de todo esse processo o escravismo, reconstruído, reabilitado e fundamentado no âmbito do Direito moderno no Império.

Com o declínio da atividade mineradora em Minas, Goiás e Mato Grosso, a atividade econômica teve sua orientação voltada para o litoral e o Rio de Janeiro  tornou-se o centro econômico, além de político, da colônia do Brasil. Após a independência, as câmaras e os juizados municipais representantes das regiões desfavorecidas com a nova ordem econômica e geopolítica sentiram-se contrariados, ocorrendo então o primeiro conflito entre o público e o privado no âmbito do Império. Uma das consequências desse processo foi o surgimento das rebeliões regenciais, pautadas em questões como o liberalismo, o centralismo imperial, a “liberdade individual e o pacto político do Estado Constitucional moderno” (p.16)
Sobre o privilégio privado, no capítulo subsequente, o autor sustenta que o privilégio de possuir escravos estava atrelado à “concepção da vida privada” (p. 16) e que esta, por sua vez, era intimamente ligada à vida familiar. No Brasil escravocrata, a ordem privada se contradizia à ordem pública. O escravo era propriedade, mas com a anuência da autoridade pública. Construído e reconstruído pelo Direito moderno no Brasil, o escravismo foi pedra basilar da ordem privada brasileira, fundamentando o “cotidiano, a sociabilidade, a vida familiar e a vida pública brasileira.” (p. 16) . Para o autor, essa é a ideia central do ensaio, a de que o escravismo não é herança dos tempos coloniais, mas uma espécie de compromisso para o futuro, dentro do contexto do Império e de sua pretensa projeção sobre a contemporaneidade.
Como o escravismo era totalitário, isto é, estava entranhado em toda a estrutura da sociedade, fazia-se mister o controle desse elemento (o escravo) potencialmente perigoso. Resumindo, o autor coloca que, independentemente da instabilidade, dos conflitos e oposições entre revolucionários e legalistas, durante as revoluções do Império, se respeitasse a  “ordem privada escravocrata” (p. 20).
O capítulo seguinte versa sobre a “hegemonia fluminense”, da posição destacada, influente e central que o Rio de Janeiro exercia na época, constituindo-se a capital política, econômica e cultural do Império do Brasil. O Rio de Janeiro era, nessa época, para Alencastro, uma grande “eclusa”, a porta de entrada do Brasil para o mundo, ao mesmo tempo em que “acomodava” os regionalismos num âmbito maior, agora verdadeiramente nacional. Era também parada portuária obrigatória para a rota que ligava o leste americano ao oeste, via oceano Atlântico, além de ser, regionalmente, o centro da economia.
O autor enfatiza o constante aumento populacional verificado nos censos desde a chegada da Família Real e da Corte, salientando a presença maciça da população de origem ou simplesmente africana, constituindo-se em uma cidade “meio africana”. Ao contrário dos Estados Unidos, onde já não mais existia, a escravidão no Brasil grassava, estando presente em todas as regiões do país e estruturas socioeconômicas, e também por isso era considerado potencialmente perigoso para a estabilidade monárquica.
A província do Rio de Janeiro exerceu considerável influência na política, ao concentrar os interesses escravagistas. Para Joaquim Nabuco, o Rio de Janeiro era a mais “reacionária” província do Império, em que “a escravidão estava politicamente organizada” (p. 30).
A maneira de falar do “carioca” – palavra usada já no Império e presente até hoje para denominar os habitantes do Rio de Janeiro – também influenciou todo o Brasil. O ”sotaque” carioca torna-se definido e perceptível em função da presença e influência do falar da Corte, exercendo um domínio no âmbito linguístico que tornou muito característica a fala carioca, presente já naquela  época, que ainda não era a do rádio e da televisão.
O Rio de Janeiro, enquanto centro comercial e portuário, assiste ao afluxo de pessoas, profissionais e mercadorias  advindos de todo o Brasil e do exterior, mormente a Europa, o que resultou em uma “europeização” dos costumes e hábitos. Com o fim do tráfico, houve um acúmulo e um retorno de capitais, antes despendidos na compra de africanos, que ensejaram um aumento nas importações e a entrada de diversos produtos, “duráveis, semiduráveis, supérfluos, jóias, etc.”( p. 37).
Juntamente a esse fluxo comercial, e apesar do estreitamento das relações comerciais com os Estados Unidos em função da corrida do ouro na Califórnia, as elites imperiais brasileiras tornaram-se decididamente “afrancesadas”. Esse “francesismo” estendia-se além da cópia dos costumes e modismos franceses, buscando assimilar também a vida rural francesa à realidade dos trópicos escravocratas. Esse “imaginário rural francês” chegava aos brasileiros através da literatura, pelos folhetins e romances franceses.
O ambiente e o sentimento francófilo ajudam a explicar a entrada e influência de três correntes de pensamento oriundas da França: o positivismo, o kardecismo e a homeopatia. Nesse ambiente efervescente do ponto de vista intelectual, não só as idéias estavam em ebulição e mudanças no Império, mas também a música.
A flauta, a rabeca e o violão eram os instrumentos europeus mais comuns no Brasil no início do século XIX. Outros instrumentos europeus mais sofisticados, como a harpa e o cravo, tinham menos espaço na cena musical do Império, sendo que o piano, nesse período, era praticamente desconhecido no Brasil. Mas, ressalta o autor, todos esses instrumentos e a música nesse período já estavam fortemente influenciados pelos ritmos “afro-brasileiros”, devido à onipresença da escravidão africana no Brasil.
Nos anos 1850 em diante há uma mudança na música por causa do aumento na importação de pianos, bem como de inúmeros outros bens de consumos, agora acessíveis devido ao fim do tráfico negreiro. O piano foi uma espécie de “mercadoria-fetiche” (p. 46) dessa época de mudanças políticas e econômicas, com valor agregado alto, sendo sinônimo de status social. Tão grande era a procura que a concorrência entre marcas estrangeiras resultou na instalação de grandes depósitos de pianos. Nesse sentido dos impasses da música imperial é que vários escritores e pensadores debateram, e Machado de Assis escreveu um conto que se tornou sintomático: “Um homem célebre”. Trata-se do drama  do pianista Pestana, que tem a ambição e o desejo de eternizar-se na memória musical ocidental, assim como seus ídolos Mozart, Beethoven e Bach. Tenta  compor como eles, mas o máximo que conseguia eram polcas que, apesar da sua frustração, eram populares.
O próximo capítulo fala sobre o carnaval. Nele, o autor discorre sobre a ruptura que separou a festa pública da festa privada. Nas festas menores encontravam-se variados tipos de dança, como a “cachuca”, a polca e a valsa. Porém, nas festas maiores houve uma separação por volta de 1840, da festa de rua, o “entrudo”, de caráter popular, com o carnaval de salão, branco e elitista. O carnaval de salão, dos clubes, era considerado mais civilizado e distinto socialmente, e ficou restrito a uma minoria que podia pagar o ingresso. A festa de rua, o “entrudo moleque”, ficou para o divertimento do público em geral, ao alcance das “cacetada da polícia” (p. 53).
            O tema do último capítulo do ensaio são os nomes dados aos brasileiros e seus motivos. Após a Independência houve a ocorrência de um movimento nativista e contrário a Portugal na escolha dos nomes dos brasileiros, havendo inclusive casos de “tupinização” dos nomes, como, por exemplo, o Visconde de Jequitinhonha, estadista do Império, cujo nome original era Francisco Gomes Brandão. A elite imperial tinha grande admiração pelos astecas, civilização pré-colombiana que aos seus olhos melhor encarnava o espírito pró-americano, sendo que inclusive o nome maçom de Dom Pedro I era Guatimozín, último imperador asteca.
            Logo após esse período, durante as revoluções regenciais, a mudança de nomes tomou outra significação. Não havia na época nenhuma lei que normatizasse a respeito desse assunto. Era fácil trocar de sobrenome e/ou colocar o sobrenome de mãe ou dos avós. Gradualmente, nesse período, os nomes cristãos foram sendo trocados por nomes gregos e romanos, como Sêneca, Sócrates, Júpiter Marte e Saturno, e depois franceses e ingleses, como Antuérpia, Philadelphia e Marilândia. Houve também, no contexto da imigração europeia, nomes relativos à Alemanha, como um tal de João Leão Bismarck.
            O ideário republicano no final do Império trouxe consigo nomes relativos aos republicanos americanos, como Jefferson, Franklin, Washington, e os nomes republicanos romanos, como Múcio, Mário, Cornélia, Caio e etc.
            Finalizando, o autor destaca que o câmbio constante de nomes no Império parece ter sido influenciado pelas diferentes movimentações das estruturas e camadas sociais. A elite senhorial e urbana escolhia nomes relativos ao indianismo ou ao nativismo, encontrados principalmente em romances e folhetins da época, ou nomes extraídos das civilizações clássicas greco-romanas. De outro lado, nas cidades, distantes do domínio e da influência senhorial e patriarcal, os pobres, os escravos libertos, as camadas populares de uma maneira geral, se sentiam livres para escolherem seus nomes da maneira que julgassem melhor, e, no geral, não copiavam ou utilizavam-se do registro nominal de seus antigos chefes e senhores, como uma espécie de resistência e exercício de esquecimento de seu passado recente de escravidão e dominação.  A proliferação de apelidos entre as camadas populares significava possivelmente uma substituição e uma adequação à crescente laicização da sociedade e das instituições, fenômeno já acentuado no final do Império. Esse é um período marcado pelo constante enfraquecimento da influência da liturgia católica no seio da vida privada no Brasil.
            Recomenda-se a leitura do ensaio de Alencastro porque se constitui em uma interessante e importante fonte de informação sobre o período correspondente ao Império no que se refere às tensões e diálogos entre as esferas do público e do privado, da vida familiar, dos costumes, da vida cotidiana, dos modismos e tendências socioculturais de uma sociedade em constante mudança e na busca por uma definição identitária. Para além do conhecimento histórico em si sobre o período e do detalhamento e riqueza de informações presentes no texto, o ensaio permite pensar uma série de problemáticas que hoje em dia se colocam e têm relação com o período analisado pelo autor. Através do estudo da vida e da ordem privada no Império pode-se tentar estabelecer paralelos históricos com o presente, ajudando na construção de ideias que permitam aclarar questões relativas ao público e ao privado, tão constantes e prementes para o Brasil contemporâneo.


ALENCASTRO, L. F. de. Vida privada e ordem privada no Império. In: NOVAIS, Fernando A. (Coord.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997-1998. p. 11-95, vol. 2.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

A REVOLUÇÃO NICARAGUENSE

         A história da Nicarágua conta-se entre lágrimas, turbulência e desigualdade social. País de pequena extensão territorial, localizado na América Central, a Nicarágua foi colonizada pela Espanha até o início do século XIX, quando da sua independência. O país, que permaneceu atrasado durante os quase 300 anos de colonização espanhola, teve perto da totalidade de sua população indígena exterminada. Sua história é também marcada por disputas de poder entre os descendentes de espanhóis, concentrados nas famílias dominantes, que detinham, por sua vez, a imensa maioria das terras.
            A questão da terra é outro fator importante na história da Nicarágua, dada a extrema concentração fundiária. No período do pós-independência a história do país é marcada ainda por conflitos entre a facções políticas dos conservadores e liberais da classe fundiária, e a influência constante dos Estados Unidos desde o início do século XX é outro fator indispensável para se entender a história do país.
Assim, a história da Nicarágua no século XX continua marcada por conflitos. O principal conflito da história contemporânea da Nicarágua é a Revolução Sandinista dos anos 70 e 80, processo revolucionário decorrente das gigantescas contradições e das desigualdades sociais na Nicarágua, em oposição às sangrentas ditaduras da família Somoza. Nos anos 20 e 30, Augusto Sandino, ícone da revolução posteriormente levada a cabo, comanda um exército guerrilheiro contra um governo iníquo e a influência dos Estados Unidos na política do país. Bradando contra a propriedade privada, Sandino, um notório estrategista militar, comanda o movimento insurgente que, formado principalmente por campesinos, assume a bandeira rubro-negra e inspira política e ideologicamente toda uma geração de nicaraguenses.
            O ditador Anastácio Somoza, que assume o poder em 1936, através de um golpe, logo após a morte de Sandino, era filho e herdeiro de um grande latifundiário. Oriundo, portanto, de uma classe tradicional de proprietários de terras, Somoza (Tacho) foi o mandatário em uma violenta ditadura, que preconizaria a violência da ditadura de seu filho, Anastácio Somoza (Tachito). Os anos 30 são de crise econômica na Nicaragua (1929), ao mesmo tempo em que se consolida o regime, o Estado e se constitui a famigerada Guarda Nacional. A produção agrícola, principal atividade econômica do país, gerava grandes fortunas, mas, sobretudo, miséria e desemprego.
Em 1956 morre Somoza e assume seu filho, Luís Somoza, ao mesmo tempo em que Anastácio Somoza, o “Tachito”, assume a chefia da Guarda Nacional. No plano internacional, a Revolução Cubana, em 1959, será uma referência importante para a movimentação política que começava a surgir na Nicarágua. A atuação de Carlos Fonseca, ativista político, foi fundamental no sentido de dar início a uma nova fase nas lutas populares na Nicarágua, além de ter redescoberto a figura de Sandino e tê-lo reconhecido como herói e inspiração para a luta contra as desigualdades e as ditaduras da família Somoza. No período revolucionário subsequente, nos anos 70, os dois tornam-se heróis nacionalistas. Para Fonseca, além disso, Cuba e Nicarágua estariam ligadas por “laços indestrutíveis”
Ainda nos anos 60 surge a FSNL – Frente Sandinista de Libertação Nacional, sob forte influencia da Revolução Cubana – pois os rebeldes esperavam repetir a experiência cubana – e das demandas e lutas de Sandino e da população pobre do campo e das cidades em geral. A FSNL não tem uma data de criação, sendo criada, ao contrário, “no calor da luta”. Nos anos 60 há, com a ajuda financeira dos Estados Unidos, um expressivo crescimento econômico, porém, a população mais pobre não usufruiu desse crescimento, sendo que no campo, por exemplo, a situação se tornou ainda mais dramática.
Os líderes da FSLN tiveram que pensar suas estratégias e respectivas agendas de ação política, elaborando teorias políticas e revolucionárias. A visão nacionalista da FSLN era inspirada em Sandino, e preconizava que a Nicarágua nascera e se definira em função da luta contra o colonialismo espanhol e o imperialismo norte-americano. Em 1967, com o assassinato de Luís Somoza, assume o irmão caçula, Anastácio Somoza (Tachito), que se tornaria o ditador mais notório e cruento da história da Nicarágua.
No início dos anos 70, as divisões e diferenças de classe se acentuam – o analfabetismo, por exemplo, é endêmico. Em 1972 ocorreu um terrível terremoto na Nicarágua, sendo que a capital, Manágua, nunca foi reconstruída, e o ditador Somoza se aproveitou, através de suas empresas e de sua influência, para lucrar com a tragédia. Somoza passa a ser considerado a partir do início dos anos 70 como um “problema nacional”.
A FSLN consegue o apoio de setores da Igreja Católica sob influência da Teologia da Libertação, sendo que a cúpula da Igreja da Nicarágua apoiava o governo de Somoza. Em 1974 ocorre um ataque bem sucedido da FSLN, denominado “Rompendo o Silêncio”. A resposta somozista ao ataque, dada sua extrema violência, através das atrocidades da Guarda Nacional, gerou um novo ambiente político no país, além de gerar indignação nas classes proletárias e do campo.
O ano de 1978 marca o começo da crise final da ditadura de Somoza. Como as ações repressivas de Somoza não cessassem, a atuação da FSLN torna-se intensa, aliada a ações populares espontâneas contra o regime. Uma profunda crise social e econômica acompanha a crise política, sendo altos os níveis de desemprego. Assim, as classes operárias e a juventude nicaragüense tornam-se um importante apoio para a Revolução em curso. São intensas também as ações repressivas, a resistência de Somoza e a violência da Guarda Nacional.
Uma série de insurreições urbanas, de caráter operário, pululam por toda a Nicarágua, principalmente na capital, Manágua. Os revolucionários lutavam por motivos diferentes, as exigências eram diversas, de classe, terra, moradia, emprego, saúde, etc. em 1979 a FSLN e a revolução vencem a guerra civil e assumem o poder na Nicarágua. Prontamente, após a partida de Somoza, há a convocação de eleições. Os Estados Unidos relutam em aceitar a legitimidade do governo revolucionário.
O resultado do conflito foi a devastação do país, já assolado pela corrupção, além dos mais de 50 mil mortos durante guerra revolucionária. Estabelece-se uma Junta de Governo, sendo que o novo Diretório Nacional estabelece uma série de “medidas populares” – medidas de emergência – como a nacionalização da economia. De cara o país enfrenta sérias dificuldades econômicas com a fuga de capitais, que acabou gerando desemprego e altos níveis de inflação. No ano de 1981 a descapitalização e polarização e diferenças de classe pioram intensamente, acompanhada da radicalização da ideologia sandinista.
Além disso, a revolução passou a ser constantemente atacada por ex-integrantes da Guarda Nacional – os famosos Contras – estabelecidos em Honduras e El Salvador, financiados, por sua vez, pelos EUA. Havia, destarte, duas guerras na Nicarágua: uma era a luta de classes e a outra contra o imperialismo norte-americano, através dos Contras. A influência cubana é constante e frequentemente reivindicada pela FSLN, que parecia não conseguir dar conta das demandas e urgências da Nicarágua.
Em 1987 os conflitos militares se desaceleram, ao mesmo tempo em que distribuição de terras declina. A FSLN respondeu a crise do pós-guerra com medidas de austeridade neoliberais semelhantes a outros países latino-americanos. Em 1990 a FSLN (Daniel Ortega era o candidato) perdeu as eleições para a oposição.
Pode-se dizer que uma revolução social autêntica é praticamente impossível sob a influência norte-americana, em território considerado como “quintal”. De fato, o que ocorreu na Nicarágua foi uma revolução popular genuína, que, todavia, não pode superar as contradições insustentáveis do pós -79, entre elas, a de que a elite econômica não detinha o poder político. A derrota nas eleições de 1990 refletiram o sentimento da população nicaragüense em não dar seu voto para um governo que não era mais revolucionário.

Referência

A Revolução Nicaraguense, por Matilde Zimmermann (2010)
Cidade da Arte


Nas paredes da cidade, o belo.

Extático, sou percorrido.
Meu sentido é a rua chã.
Sou um pálido homem.

Adiante, o fim do espanto.
Onde começa? O meu pranto
Idealiza a vida, apesar
Do espectro mundo.

Meu olhar turvado
Desata nós de concreto.
Sou momento desmedido,
Catarse dual, mas variada.

Minha alma, que é corpo,
Absorve a dúvida do aborto
Da existência ingrata,
Transformando dor em canção.

Não sei onde está o passado,
Nem onde procurá-lo.
Perdi o linho condutor.
A Arte ainda me interroga.



Rafael Petry Trapp, 2009

sábado, 15 de janeiro de 2011

ESCREVENDO A HISTÓRIA COM PAUL VEYNE

           O historiador francês Paul Marie Veyne pode certamente ser considerado um dos mais profícuos e polêmicos historiadores da historiografia contemporânea francesa e mundial. Nascido em 1930, em Aix-en-Provence, no Sul da França, doutor em Letras, esse historiador é autor de livros importantes na área dos estudos da Antiguidade clássica, em especial romana, como O império greco-romano, O pão e o circo – livro que lhe rendeu um lugar no Collège de France –, A sociedade romana e Como nosso mundo se tornou cristão.
Além desses trabalhos, Paul Veyne produziu importantes volumes no campo da historiografia e teoria da história, como o ensaio de epistemologia histórica Como se escreve a história (1971), o artigo A história conceitual (1974), O inventário das diferenças (1976), sobre história e sociologia, o livro sobre a questão da verdade histórica Acreditavam os gregos em seus mitos? (1977), além do já clássico Foucault revoluciona a história (1978) e uma biografia intelectual desse mesmo autor, Foucault: sua vida, seu pensamento (2008).
Autor de difícil enquadramento em alguma corrente historiográfica específica, Paul Veyne é contemporâneo da terceira geração dos Annales na França, colaborando no sentido da difusão da chamada História Nova, com publicações em conjunto com esses historiadores. É um dos poucos historiadores franceses que procurou estabelecer um diálogo intenso com a filosofia, em especial com o campo da epistemologia (CARDOSO JÚNIOR, 2003). Entre outras denominações, já foi considerado como o epistemólogo da História Nova (ALBERTTI, 2007), protótipo do historiador pós-moderno (RUDIGER, 1995) e um irracionalista “sem aspas” (ZANDONÁ, 2004).
O trabalho que aqui será apreciado para análise é a sua primeira produção no campo da historiografia, o livro Como se escreve a história. Escrito quase em tom de manifesto, este livro, quando de sua publicação, no início dos anos 70 na França, surgiu envolto em polêmicas historiográficas, teóricas e acadêmicas. Prova disso são as ácidas resenhas de Raymon Aron (1971) e Michel de Certeau (1971), ambas publicadas na revista dos Annales. No Brasil sua recepção não foi menos problemática, como demonstra Zandoná (2004), ao realizar uma análise das críticas de historiadores brasileiros como Cardoso (1997) e Maestri (1990) ao autor e à obra.
Como se escreve a história divide-se em três partes, a saber, O objeto da história, A compreensão e O progresso da história. Neste livro de epistemologia histórica, Veyne, para além de sua notável erudição – ironizada por Aron (1971) –, discute algumas das principais questões e problemas historiográficos com os quais os historiadores se deparam em suas pesquisas e na tarefa de escrita da história. Noções como acontecimento, narrativa, intriga, trama, conceitos e teoria estão presentes nas reflexões do autor.
A primeira parte, O objeto da história, ocupar-se-á da definição do que seja a história e de suas possibilidades e limites epistemológicos. Assim, o autor começa por dizer que a história é conhecimento, sempre incompleto, mediante documentos e indícios. A individualização dos eventos históricos é função simplesmente de acontecerem, o que quer dizer que eles jamais se repetem, ainda que falem da mesma coisa. A história, sendo anedótica, seria interessante porque atividade narrativa, porém distinguir-se-ia do romance em um ponto essencial, qual seja, o de que o que interessa ao historiador é a busca da verdade.
  O campo da história é indeterminado, porém, requer-se que o que nele se inclua tenha acontecido. Todavia, a história é por natureza lacunar, um grande espectro de incoerência. O historiador, em uma mesma página, muda de tempo, usa para a mesma descrição conceitos de natureza conflitante e muitas vezes anacrônicos. A noção de não-factual é de fundamental importância, na medida em que é a historicidade da qual não se tem consciência, ou seja, os eventos históricos ainda não consagrados, para além da historiografia política.
Os fatos, para Veyne (1995), não têm dimensões absolutas. Assim sendo, não há uma hierarquia entre os diversos núcleos de historicidade e as séries de eventos, tudo dependerá da escolha do historiador, e essa escolha é livre. Um evento, em história política, pode não ter a mesma importância em uma série de eventos de história econômica. A confusão no interior das diversas e infinitas séries adviria do gênero histórico chamado de “história geral”, centrada, sobretudo, na história política.
Mas qual seria, então, a extensão da história? O autor nos responde dizendo que a história é uma ideia-limite, não há História com maiúscula, só há “histórias de...” (VEYNE, 1995, p. 23), pois os acontecimentos só adquirem sentido dentro de uma série específica e o número de séries não pode ser definido. Essa História seria, quase sempre, a da história nacional e da civilização, estabelecendo por si própria os acontecimentos que seriam “históricos”. Ao contrário, parece inegável que os acontecimentos são de toda a espécie e o mundo é o do devir, portanto, tudo é histórico e a História não existe. Ela é, portanto, subjetiva, pois a escolha de um assunto dentro de uma série de eventos é livre.
Para um historiador a história não se constitui nem somente em fatos nem como a estrutura de um geometral, mas em tramas. Os fatos a serem escolhidos pelo historiador dependerão da trama escolhida, dentro de uma série específica, e essa escolha não pode descrever uma totalidade histórica, pois qualquer descrição é seletiva. Assim, não há um sentido histórico, uma rota a ser traçada no campo factual, pois os acontecimentos não são totalidades, mas “núcleos de relações” (VEYNE, 1995, p. 32). Tudo é histórico, mas só há história parcial, portanto, a história será o que o historiador escolher.
Mas, a que interesse e a que tipo de conhecimento a história visa a satisfazer? Responde o autor que a história é uma atividade de curiosidade em relação ao específico. O historiador estaria em busca da especificidade dos acontecimentos, pois não são necessariamente os indivíduos em si mesmos que são interessantes, mas o que apresentam de específico.
Para Veyne (1995), a escrita da história é uma atividade intelectual, logo, a consciência espontânea e comum não possui uma noção muito elaborada de história. Os objetivos do conhecimento histórico estariam ligados, quase sempre, a algum atrativo particular especial – nação, sociedade, tradição, família – ou à curiosidade, anedótica ou acompanhada de inteligibilidade. A história possui uma referência de nascimento, mas não é acompanhada de uma consciência histórica conjunta, pois a historiografia é um acontecimento cultural que não implica qualquer ação sobre a historicidade. A história é uma atividade do conhecimento e não um manual de vida, não se pode confundir o ser e o conhecer.
Na segunda parte do livro, A compreensão, o autor desenvolve reflexões sobre as noções de trama, conceitos, causalidade e consciência histórica. A história, para o autor, é sempre uma narração, e o que se entende por explicação histórica é apenas a maneira que a narração tem de se organizar em uma trama compreensível. A explicação histórica é sublunar e jamais científica. Essa explicação histórica teria o nome de compreensão, e se utilizaria muito mais de saberes cotidianos e de concepções do senso comum do que de esporádicas verdades científicas. No mundo sublunar da história habitam a liberdade, acasos, causas e fins, contrapondo-se ao mundo da ciência e de suas leis. A compreensão não seria mais do que a clareza advinda de uma narração bem documentada (VEYNE, 1995).
A explicação histórica, provinda do mundo sublunar, possuiria três fatores principais: o acaso, ou as causas superficiais, os incidentes e oportunidades; as causas, ou os dados objetivos, ou ainda causas materiais; finalmente, a liberdade, o ato deliberativo, ou a causas finais. Para Veyne (1992, p. 56) “enquanto houver homens, não haverá fins sem meios, os meios só serão meios em relação aos fins e o acaso existirá apenas pela ação humana”. A compreensão da história não deve consistir em pretender discernir profundezas em que não as há. Além disso, a realidade histórica não é racional, muito menos sensata e previsível.
O autor discute também a questão das teorias e conceitos em história, os quais ele considera um problema pertinente de ser pensado. Teorias, tipos e conceitos não seriam mais do que resumos de trama compreensível, que levariam, em última instância, a tipologias. Veyne assevera que, sim, a história se exprime através de conceitos, e que adquirir novos conceitos é um dos progressos possíveis da historiografia. Os conceitos oriundos do sublunar, mais afeito ao mundo dos historiadores, são substancialmente diferentes dos científicos, pois pertencem ao sentido comum (cidade, revolução). Não têm limites muito bem definidos e deve-se estar muito atento aos que encerram em si falsas essências e que enchem a história de universais duvidosos ou inexistentes (ex.: religião).
É essencial, além disso, que se historicize os conceitos, de modo que o historiador não incorra em classificações incorretas e, por vezes, anacrônicas. A utilização de um conceito deve ser pensada em função das especificidades históricas, pois o que vale para uma época não se configura verdadeiro e utilizável para outras (ex.: classe social).  A historiografia é um embate intenso e incessante contra a tendência muito humana ao anacronismo. Os conceitos sublunares são sempre falsos porque são imprecisos, e assim o são porque o próprio objeto não para jamais de mudar; assim, nada existe em estado puro, idêntico e isolado, exceto as entidades abstratas (ex.: o ser e a identidade).
Na seção seguinte, discutindo a questão da causalidade, o autor enfatiza que a história não é uma ciência e seu modo de explicação é o de fazer compreender, ou seja, o processo narrativo. A dificuldade em realizar a síntese histórica, operação das mais complicadas para o historiador, explicar-se-ia por duas razões principais: a dificuldade de conceitualizar a diversidade da realidade concreta e o também dificultoso processo de preenchimento das lacunas no conhecimento histórico, pois os documentos são sempre incompletos e indiretos, quando não inexistentes. A síntese histórica seria o resultado desse processo de preenchimento, que o autor chama de “retrodicção” (VEYNE, 1995, p. 73). A retrodicção envolveria os problemas de probabilidades das causas e das hipóteses, procurando responder às indagações sobre as causas de algum acontecimento, pela melhor explicação possível, a que melhor tape os buracos. Entender a síntese histórica e/ou a retrodicção seria refletir sobre o papel da indução e da causalidade histórica na escrita da história.
Para Veyne, a causalidade histórica é sempre sublunar, necessária e irregular, e o futuro contingente. Não há uma consciência que precise com segurança as circunstâncias para determinar a validade de uma lição histórica ou conceito, pois todo acontecimento é diferença e possui causas, mas essas nem sempre têm consequências, e são deveras desiguais as chances de algo acontecer. O método histórico adviria da “experiência histórica” própria a cada historiador, da cultura histórica acumulada, “composta de tudo que um historiador pode aprender aqui e ali em sua vida, em suas leituras e em sua convivência com outrem” (VEYNE, 1995, p. 79), sendo que o limite da objetividade histórica corresponderia à variedade das experiências pessoais do historiador. A história escreve-se com a personalidade, com uma variedade de conhecimentos confusos, porque livrescos, mas não é um método.
            Outra questão importante que o autor procura discutir é o do pretenso caráter científico da história, se se explica a história por causas ou leis, se a história é arte ou ciência. A fronteira da explicação histórica estaria entre o nomos científico e a explicação histórica cotidiana, por demais confusa para poder ser generalizada em leis; a explicação histórica não é nomológica, mas causal. Uma relação de causalidade pode ser repetida, mas não se pode afirmar com certeza quando ou em que condições esse evento dar-se-á; a experiência histórica não é, portanto, formulável, não há como ignorar sua especificidade. A história, para Veyne, jamais será científica (VEYNE, 1995), pois sua explicação está atrelada às causas, que, por sua vez, somente existem em função das tramas; a narratividade é infinita, pois a compreensão histórica é descrição, e esta é em número indefinido. A história, conhecimento do sublunar, estaria muito mais próxima da doxa.
            Em relação à consciência das ações humanas, o autor diz que é certo que os homens têm objetivos, porém não sabemos quais são. A compreensão nos mostra a perspectiva segundo a qual uma ação humana parecerá explicável e banal, mas não há como atribuir juízos de valor a essas explicações. Explicam-se as ações a partir dos valores de outrem, ou então se se informa sobre os fins alheios. Para Veyne (1995, p. 96), “a consciência histórica não está na raiz da ação e nem sempre ela é uma marca que permita reconstituir, de modo seguro, o conjunto de um comportamento histórico.”
            Na terceira e última parte do livro, O progresso da história, Paul Veyne discutirá temas relacionados aos progressos possíveis para a história, o historiador, e à historiografia e, além disso, sobre as relações da história com as ciências humanas e a sociologia. O dever primordial do historiador, na tarefa da ampliação de seu questionário, seria a busca incessante pela verdade e a explicação das tramas. O esforço pela conceitualização progressiva seria um progresso considerável, na medida em que “a formação de novos conceitos é a operação mediante a qual se produz o enriquecimento da visão.” (VEYNE, 1995, p. 106)
            A história estritamente factual, “atualidade política requentada” (VEYNE, 1995, p. 111), deve ser questionada, voltando-se o historiador para o mundo da historicidade não-factual. Há algumas noções e conceitos que são necessários ser desconstruídos e deixados de lado, como a psicologia dos povos e o espírito nacional. A história, para Veyne, não tem método, mas tem uma tópica, e sua escritura é muito menos fácil do que se imagina, pois há a necessidade de uma cultura histórica e historiográfica. O conhecimento histórico progride na medida em que aumenta o repertório dos tópicos, sendo que para isso concorre muito mais a multiplicação das perguntas possíveis do que as respostas, pois o ser humano é algo variável demais para que se lhe atribua alguma fixidez. Entendendo a história como fundamentalmente narrativa, Veyne (1995) considera que o valor de um historiador está muito mais em sua riqueza de ideias e percepção das nuanças do que em sua concepção de história.
            Na penúltima seção do livro, ao analisar a relação do sublunar e das ciências humanas, o autor enfatiza a existência de leis em história, mas não de leis da história, e que as leis e os acontecimentos históricos não coincidem (VEYNE, 1995). Os fatos encerrados em modelos não são os que interessam ao historiador. A história que se escreve e a que se vive é composta de noções da experiência, e não provém da razão. A impossibilidade da cientificidade da história advém não da natureza da condição do homem enquanto ser histórico, mas das condições do conhecimento, pois o sublunar e o científico só se opõem em nível epistemológico, e, além disso, a ciência não é todo o conhecimento.
O real parece estar em constante fuga por entre os dedos do historiador, pois, ao mesmo tempo em que a causalidade não é nunca constante, não se consegue passar da qualidade à essência. Assim, a oposição entre o realismo aristotélico e o formalismo platônico dá-se também no campo da epistemologia histórica. O historiador deve se esforçar por acabar com os reducionismos e os anacronismos, para encontrar a originalidade das essências, qual seja, a especificidade dos eventos. A história está sempre sendo escrita a partir de causas, fins e acasos. Não há possibilidade de uma escrita da história ser revolucionária, simplesmente porque a vida não pode deixar de ser cotidiana. Uma citação do autor nos fornece um apanhado e uma síntese interessante de algumas de suas principais ideias. Assim, para Veyne (1995, p. 133)
A história é um palácio do qual não descobriremos toda a extensão (não sabemos quanto nos resta de não-factual a historicizar) e do qual não podemos ver todas as alas ao mesmo tempo; assim não nos aborrecemos nunca nesse palácio em que estamos encerrados. Um espírito absoluto, que conhecesse seu geometral e que não tivesse nada mais para descobrir ou para descrever, se aborreceria nesse lugar. Esse palácio é, para nós, um verdadeiro labirinto; a ciência dá-nos fórmulas bem construídas que nos permitem encontrar saídas, mas que não fornecem a planta do prédio.
Na última seção do terceiro e último capítulo, o autor discute o futuro da história e das ciências humanas, em especial as relações que a história poderia estabelecer com a sociologia. Veyne reforça suas assertivas em relação a algumas noções desenvolvidas no transcorrer do livro, tais como a não-existência de uma ordem mestra de fatos na história, a impossibilidade da história em ser científica e a busca pela especificidade dos eventos.

VEYNE, Paul Marie. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. Tradução de Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. 3 ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília (UNB), 1995.