"Os leitores extraem dos livros, consoante o seu caráter, a exemplo da abelha ou da aranha que, do suco das flores retiram, uma o mel, a outra o veneno." Nietzsche

domingo, 26 de dezembro de 2010

MULTICULTURALISMO E LEITKULTUR

    O paradigma do multiculturalismo tem sofrido sérios abalos ao longo dos últimos tempos na Alemanha. As noções correntes de que seria possível conviver com as diferenças e o discurso da tolerância e da integração em relação aos imigrantes de origem turca ou árabe vem sendo debatidas e questionadas intensamente pela opinião pública, mobilizando e dividindo setores os mais diversos e por vezes inesperados da sociedade alemã. Nesse sentido, a publicação recente na Alemanha de um livro de teor xenófobo, antissemita e islamofóbico tem mobilizado a opinião pública alemã, propiciando e potencializando debates extremados.
     No livro em questão, “Deutschland Schafft Sich Ab” (ainda sem tradução para o português), o autor, Thilo Sarrazin, afirma que a presença dos imigrantes “errados”, ou seja, os de origem islâmica (Muslims), ameaça a cultura e a identidade das sociedades europeias, mais especialmente da Alemanha. Os alemães estariam a ponto de se sentir estrangeiros em seu próprio país, pois, em seu entendimento, a taxa de natalidade dos descendentes dos turcos alemães seria muito alta, a ponto de, no futuro, superar a população dos alemães “autênticos”.
           A presença desses “estrangeiros” e de seus descentes, além de contribuir para reduzir o “quociente de inteligência” da Alemanha, em função de serem “naturalmente” incapazes, estaria colocando em risco o futuro dos alemães enquanto povo e identidade cultural e do país enquanto Estado-nação. Não bastassem essas pérolas, Sarrazin polemizou ainda mais ao considerar que os judeus teriam um gene em comum, o que os tornaria substancialmente “diferentes” dos “alemães”.
     Sarrazin, até então diretor do Banco Central alemão, sofreu uma saraivada de críticas, apesar de seu livro ter se tornado um best-seller e pesquisas de opinião apontarem simpatia de parte significativa da população alemã às teses do autor. A chanceler Angela Merkel prontamente qualificou o conteúdo do livro e as declarações públicas de Sarrazin como “inaceitáveis”. A chanceler, por sua vez, já havia declarado em outubro que o multiculturalismo estava “morto” na Alemanha e que os esforços pela integração dos imigrantes haviam falhado sobejamente.
     Em artigo recente, o filósofo Jürgen Habermas discute as ambiguidades e conflitos decorrentes do multiculturalismo e da presunção de integração em relação à controvertida Leitkultur (cultura predominante). Para Habermas, Sarrazin adota um discurso de naturalização das diferenças culturais e intelectuais, tese desacredita pela comunidade científica internacional, em função do horror nazista e do Holocausto. Apesar disso, o debate em curso na Alemanha não seria uma reprodução da atmosfera mental dos anos 30, estando atrelado em maior medida aos conflitos de origem étnica contemporâneos, como a tensão nos Bálcãs nos anos 90 e os processos diaspóricos e de imigração observados no pós-Guerra Fria e Queda do Muro de Berlim.
  A hostilidade crescente em relação aos “Muslims” e o revigoramento de um orgulho nacional/cultural exaltado ganhou novo subsídio com o livro de Sarrazin. O que deve ser pensado e debatido é, segundo Habermas, além dos “valores” definidores da Leitkultur e da identidade nacional, fundamentalmente o entendimento do sentido da democracia na Alemanha. Ou seja, a participação no processo democrático teria apenas o sentido de silenciar uma minoria, promovendo vias para a exclusão e ossificação identitária, ou incluir os argumentos dos cidadãos na construção do processo de opinião democrática?


Rafael Petry Trapp

Texto publicado no Riovale Jornal (02/12/2010)