"Os leitores extraem dos livros, consoante o seu caráter, a exemplo da abelha ou da aranha que, do suco das flores retiram, uma o mel, a outra o veneno." Nietzsche

sábado, 15 de janeiro de 2011

ESCREVENDO A HISTÓRIA COM PAUL VEYNE

           O historiador francês Paul Marie Veyne pode certamente ser considerado um dos mais profícuos e polêmicos historiadores da historiografia contemporânea francesa e mundial. Nascido em 1930, em Aix-en-Provence, no Sul da França, doutor em Letras, esse historiador é autor de livros importantes na área dos estudos da Antiguidade clássica, em especial romana, como O império greco-romano, O pão e o circo – livro que lhe rendeu um lugar no Collège de France –, A sociedade romana e Como nosso mundo se tornou cristão.
Além desses trabalhos, Paul Veyne produziu importantes volumes no campo da historiografia e teoria da história, como o ensaio de epistemologia histórica Como se escreve a história (1971), o artigo A história conceitual (1974), O inventário das diferenças (1976), sobre história e sociologia, o livro sobre a questão da verdade histórica Acreditavam os gregos em seus mitos? (1977), além do já clássico Foucault revoluciona a história (1978) e uma biografia intelectual desse mesmo autor, Foucault: sua vida, seu pensamento (2008).
Autor de difícil enquadramento em alguma corrente historiográfica específica, Paul Veyne é contemporâneo da terceira geração dos Annales na França, colaborando no sentido da difusão da chamada História Nova, com publicações em conjunto com esses historiadores. É um dos poucos historiadores franceses que procurou estabelecer um diálogo intenso com a filosofia, em especial com o campo da epistemologia (CARDOSO JÚNIOR, 2003). Entre outras denominações, já foi considerado como o epistemólogo da História Nova (ALBERTTI, 2007), protótipo do historiador pós-moderno (RUDIGER, 1995) e um irracionalista “sem aspas” (ZANDONÁ, 2004).
O trabalho que aqui será apreciado para análise é a sua primeira produção no campo da historiografia, o livro Como se escreve a história. Escrito quase em tom de manifesto, este livro, quando de sua publicação, no início dos anos 70 na França, surgiu envolto em polêmicas historiográficas, teóricas e acadêmicas. Prova disso são as ácidas resenhas de Raymon Aron (1971) e Michel de Certeau (1971), ambas publicadas na revista dos Annales. No Brasil sua recepção não foi menos problemática, como demonstra Zandoná (2004), ao realizar uma análise das críticas de historiadores brasileiros como Cardoso (1997) e Maestri (1990) ao autor e à obra.
Como se escreve a história divide-se em três partes, a saber, O objeto da história, A compreensão e O progresso da história. Neste livro de epistemologia histórica, Veyne, para além de sua notável erudição – ironizada por Aron (1971) –, discute algumas das principais questões e problemas historiográficos com os quais os historiadores se deparam em suas pesquisas e na tarefa de escrita da história. Noções como acontecimento, narrativa, intriga, trama, conceitos e teoria estão presentes nas reflexões do autor.
A primeira parte, O objeto da história, ocupar-se-á da definição do que seja a história e de suas possibilidades e limites epistemológicos. Assim, o autor começa por dizer que a história é conhecimento, sempre incompleto, mediante documentos e indícios. A individualização dos eventos históricos é função simplesmente de acontecerem, o que quer dizer que eles jamais se repetem, ainda que falem da mesma coisa. A história, sendo anedótica, seria interessante porque atividade narrativa, porém distinguir-se-ia do romance em um ponto essencial, qual seja, o de que o que interessa ao historiador é a busca da verdade.
  O campo da história é indeterminado, porém, requer-se que o que nele se inclua tenha acontecido. Todavia, a história é por natureza lacunar, um grande espectro de incoerência. O historiador, em uma mesma página, muda de tempo, usa para a mesma descrição conceitos de natureza conflitante e muitas vezes anacrônicos. A noção de não-factual é de fundamental importância, na medida em que é a historicidade da qual não se tem consciência, ou seja, os eventos históricos ainda não consagrados, para além da historiografia política.
Os fatos, para Veyne (1995), não têm dimensões absolutas. Assim sendo, não há uma hierarquia entre os diversos núcleos de historicidade e as séries de eventos, tudo dependerá da escolha do historiador, e essa escolha é livre. Um evento, em história política, pode não ter a mesma importância em uma série de eventos de história econômica. A confusão no interior das diversas e infinitas séries adviria do gênero histórico chamado de “história geral”, centrada, sobretudo, na história política.
Mas qual seria, então, a extensão da história? O autor nos responde dizendo que a história é uma ideia-limite, não há História com maiúscula, só há “histórias de...” (VEYNE, 1995, p. 23), pois os acontecimentos só adquirem sentido dentro de uma série específica e o número de séries não pode ser definido. Essa História seria, quase sempre, a da história nacional e da civilização, estabelecendo por si própria os acontecimentos que seriam “históricos”. Ao contrário, parece inegável que os acontecimentos são de toda a espécie e o mundo é o do devir, portanto, tudo é histórico e a História não existe. Ela é, portanto, subjetiva, pois a escolha de um assunto dentro de uma série de eventos é livre.
Para um historiador a história não se constitui nem somente em fatos nem como a estrutura de um geometral, mas em tramas. Os fatos a serem escolhidos pelo historiador dependerão da trama escolhida, dentro de uma série específica, e essa escolha não pode descrever uma totalidade histórica, pois qualquer descrição é seletiva. Assim, não há um sentido histórico, uma rota a ser traçada no campo factual, pois os acontecimentos não são totalidades, mas “núcleos de relações” (VEYNE, 1995, p. 32). Tudo é histórico, mas só há história parcial, portanto, a história será o que o historiador escolher.
Mas, a que interesse e a que tipo de conhecimento a história visa a satisfazer? Responde o autor que a história é uma atividade de curiosidade em relação ao específico. O historiador estaria em busca da especificidade dos acontecimentos, pois não são necessariamente os indivíduos em si mesmos que são interessantes, mas o que apresentam de específico.
Para Veyne (1995), a escrita da história é uma atividade intelectual, logo, a consciência espontânea e comum não possui uma noção muito elaborada de história. Os objetivos do conhecimento histórico estariam ligados, quase sempre, a algum atrativo particular especial – nação, sociedade, tradição, família – ou à curiosidade, anedótica ou acompanhada de inteligibilidade. A história possui uma referência de nascimento, mas não é acompanhada de uma consciência histórica conjunta, pois a historiografia é um acontecimento cultural que não implica qualquer ação sobre a historicidade. A história é uma atividade do conhecimento e não um manual de vida, não se pode confundir o ser e o conhecer.
Na segunda parte do livro, A compreensão, o autor desenvolve reflexões sobre as noções de trama, conceitos, causalidade e consciência histórica. A história, para o autor, é sempre uma narração, e o que se entende por explicação histórica é apenas a maneira que a narração tem de se organizar em uma trama compreensível. A explicação histórica é sublunar e jamais científica. Essa explicação histórica teria o nome de compreensão, e se utilizaria muito mais de saberes cotidianos e de concepções do senso comum do que de esporádicas verdades científicas. No mundo sublunar da história habitam a liberdade, acasos, causas e fins, contrapondo-se ao mundo da ciência e de suas leis. A compreensão não seria mais do que a clareza advinda de uma narração bem documentada (VEYNE, 1995).
A explicação histórica, provinda do mundo sublunar, possuiria três fatores principais: o acaso, ou as causas superficiais, os incidentes e oportunidades; as causas, ou os dados objetivos, ou ainda causas materiais; finalmente, a liberdade, o ato deliberativo, ou a causas finais. Para Veyne (1992, p. 56) “enquanto houver homens, não haverá fins sem meios, os meios só serão meios em relação aos fins e o acaso existirá apenas pela ação humana”. A compreensão da história não deve consistir em pretender discernir profundezas em que não as há. Além disso, a realidade histórica não é racional, muito menos sensata e previsível.
O autor discute também a questão das teorias e conceitos em história, os quais ele considera um problema pertinente de ser pensado. Teorias, tipos e conceitos não seriam mais do que resumos de trama compreensível, que levariam, em última instância, a tipologias. Veyne assevera que, sim, a história se exprime através de conceitos, e que adquirir novos conceitos é um dos progressos possíveis da historiografia. Os conceitos oriundos do sublunar, mais afeito ao mundo dos historiadores, são substancialmente diferentes dos científicos, pois pertencem ao sentido comum (cidade, revolução). Não têm limites muito bem definidos e deve-se estar muito atento aos que encerram em si falsas essências e que enchem a história de universais duvidosos ou inexistentes (ex.: religião).
É essencial, além disso, que se historicize os conceitos, de modo que o historiador não incorra em classificações incorretas e, por vezes, anacrônicas. A utilização de um conceito deve ser pensada em função das especificidades históricas, pois o que vale para uma época não se configura verdadeiro e utilizável para outras (ex.: classe social).  A historiografia é um embate intenso e incessante contra a tendência muito humana ao anacronismo. Os conceitos sublunares são sempre falsos porque são imprecisos, e assim o são porque o próprio objeto não para jamais de mudar; assim, nada existe em estado puro, idêntico e isolado, exceto as entidades abstratas (ex.: o ser e a identidade).
Na seção seguinte, discutindo a questão da causalidade, o autor enfatiza que a história não é uma ciência e seu modo de explicação é o de fazer compreender, ou seja, o processo narrativo. A dificuldade em realizar a síntese histórica, operação das mais complicadas para o historiador, explicar-se-ia por duas razões principais: a dificuldade de conceitualizar a diversidade da realidade concreta e o também dificultoso processo de preenchimento das lacunas no conhecimento histórico, pois os documentos são sempre incompletos e indiretos, quando não inexistentes. A síntese histórica seria o resultado desse processo de preenchimento, que o autor chama de “retrodicção” (VEYNE, 1995, p. 73). A retrodicção envolveria os problemas de probabilidades das causas e das hipóteses, procurando responder às indagações sobre as causas de algum acontecimento, pela melhor explicação possível, a que melhor tape os buracos. Entender a síntese histórica e/ou a retrodicção seria refletir sobre o papel da indução e da causalidade histórica na escrita da história.
Para Veyne, a causalidade histórica é sempre sublunar, necessária e irregular, e o futuro contingente. Não há uma consciência que precise com segurança as circunstâncias para determinar a validade de uma lição histórica ou conceito, pois todo acontecimento é diferença e possui causas, mas essas nem sempre têm consequências, e são deveras desiguais as chances de algo acontecer. O método histórico adviria da “experiência histórica” própria a cada historiador, da cultura histórica acumulada, “composta de tudo que um historiador pode aprender aqui e ali em sua vida, em suas leituras e em sua convivência com outrem” (VEYNE, 1995, p. 79), sendo que o limite da objetividade histórica corresponderia à variedade das experiências pessoais do historiador. A história escreve-se com a personalidade, com uma variedade de conhecimentos confusos, porque livrescos, mas não é um método.
            Outra questão importante que o autor procura discutir é o do pretenso caráter científico da história, se se explica a história por causas ou leis, se a história é arte ou ciência. A fronteira da explicação histórica estaria entre o nomos científico e a explicação histórica cotidiana, por demais confusa para poder ser generalizada em leis; a explicação histórica não é nomológica, mas causal. Uma relação de causalidade pode ser repetida, mas não se pode afirmar com certeza quando ou em que condições esse evento dar-se-á; a experiência histórica não é, portanto, formulável, não há como ignorar sua especificidade. A história, para Veyne, jamais será científica (VEYNE, 1995), pois sua explicação está atrelada às causas, que, por sua vez, somente existem em função das tramas; a narratividade é infinita, pois a compreensão histórica é descrição, e esta é em número indefinido. A história, conhecimento do sublunar, estaria muito mais próxima da doxa.
            Em relação à consciência das ações humanas, o autor diz que é certo que os homens têm objetivos, porém não sabemos quais são. A compreensão nos mostra a perspectiva segundo a qual uma ação humana parecerá explicável e banal, mas não há como atribuir juízos de valor a essas explicações. Explicam-se as ações a partir dos valores de outrem, ou então se se informa sobre os fins alheios. Para Veyne (1995, p. 96), “a consciência histórica não está na raiz da ação e nem sempre ela é uma marca que permita reconstituir, de modo seguro, o conjunto de um comportamento histórico.”
            Na terceira e última parte do livro, O progresso da história, Paul Veyne discutirá temas relacionados aos progressos possíveis para a história, o historiador, e à historiografia e, além disso, sobre as relações da história com as ciências humanas e a sociologia. O dever primordial do historiador, na tarefa da ampliação de seu questionário, seria a busca incessante pela verdade e a explicação das tramas. O esforço pela conceitualização progressiva seria um progresso considerável, na medida em que “a formação de novos conceitos é a operação mediante a qual se produz o enriquecimento da visão.” (VEYNE, 1995, p. 106)
            A história estritamente factual, “atualidade política requentada” (VEYNE, 1995, p. 111), deve ser questionada, voltando-se o historiador para o mundo da historicidade não-factual. Há algumas noções e conceitos que são necessários ser desconstruídos e deixados de lado, como a psicologia dos povos e o espírito nacional. A história, para Veyne, não tem método, mas tem uma tópica, e sua escritura é muito menos fácil do que se imagina, pois há a necessidade de uma cultura histórica e historiográfica. O conhecimento histórico progride na medida em que aumenta o repertório dos tópicos, sendo que para isso concorre muito mais a multiplicação das perguntas possíveis do que as respostas, pois o ser humano é algo variável demais para que se lhe atribua alguma fixidez. Entendendo a história como fundamentalmente narrativa, Veyne (1995) considera que o valor de um historiador está muito mais em sua riqueza de ideias e percepção das nuanças do que em sua concepção de história.
            Na penúltima seção do livro, ao analisar a relação do sublunar e das ciências humanas, o autor enfatiza a existência de leis em história, mas não de leis da história, e que as leis e os acontecimentos históricos não coincidem (VEYNE, 1995). Os fatos encerrados em modelos não são os que interessam ao historiador. A história que se escreve e a que se vive é composta de noções da experiência, e não provém da razão. A impossibilidade da cientificidade da história advém não da natureza da condição do homem enquanto ser histórico, mas das condições do conhecimento, pois o sublunar e o científico só se opõem em nível epistemológico, e, além disso, a ciência não é todo o conhecimento.
O real parece estar em constante fuga por entre os dedos do historiador, pois, ao mesmo tempo em que a causalidade não é nunca constante, não se consegue passar da qualidade à essência. Assim, a oposição entre o realismo aristotélico e o formalismo platônico dá-se também no campo da epistemologia histórica. O historiador deve se esforçar por acabar com os reducionismos e os anacronismos, para encontrar a originalidade das essências, qual seja, a especificidade dos eventos. A história está sempre sendo escrita a partir de causas, fins e acasos. Não há possibilidade de uma escrita da história ser revolucionária, simplesmente porque a vida não pode deixar de ser cotidiana. Uma citação do autor nos fornece um apanhado e uma síntese interessante de algumas de suas principais ideias. Assim, para Veyne (1995, p. 133)
A história é um palácio do qual não descobriremos toda a extensão (não sabemos quanto nos resta de não-factual a historicizar) e do qual não podemos ver todas as alas ao mesmo tempo; assim não nos aborrecemos nunca nesse palácio em que estamos encerrados. Um espírito absoluto, que conhecesse seu geometral e que não tivesse nada mais para descobrir ou para descrever, se aborreceria nesse lugar. Esse palácio é, para nós, um verdadeiro labirinto; a ciência dá-nos fórmulas bem construídas que nos permitem encontrar saídas, mas que não fornecem a planta do prédio.
Na última seção do terceiro e último capítulo, o autor discute o futuro da história e das ciências humanas, em especial as relações que a história poderia estabelecer com a sociologia. Veyne reforça suas assertivas em relação a algumas noções desenvolvidas no transcorrer do livro, tais como a não-existência de uma ordem mestra de fatos na história, a impossibilidade da história em ser científica e a busca pela especificidade dos eventos.

VEYNE, Paul Marie. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. Tradução de Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. 3 ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília (UNB), 1995.

2 comentários:

  1. É, devo à tua recomendação e ao livro de Veyne o meu interesse súbito por Roma e o sucesso da mihas aulas de Filosofia Política. Parabéns pelo blog! Certamente, terás muito seguidores. Allea jacta est! Rô

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