"Os leitores extraem dos livros, consoante o seu caráter, a exemplo da abelha ou da aranha que, do suco das flores retiram, uma o mel, a outra o veneno." Nietzsche

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

REPRESENTAÇÕES RACIAIS E IMIGRAÇÃO NA DÉCADA DE 20

Assistimos, na atualidade, a um número crescente de debates sobre cotas raciais, racismo, xenofobia, identidades, alteridade. Em meio a estas informações que nos provém dos mais diversos meios, ficamos muitas vezes propensos à quantidade de informação, em detrimento da qualidade, e à provável confusão de idéias decorrentes dessa multiplicidade. Muitos desses debates são bastante superficiais e carecem de uma fundamentação empírica e de um pensar sobre a história mais rigoroso, que abarque os vários questionamentos que inevitavelmente surgem.
Nesse sentido a leitura do artigo “Dos males que vêm com o sangue: as representações raciais e a categoria do imigrante indesejável nas concepções sobre imigração da década de 20” do professor e pesquisador da UFRJ Jair de Souza Ramos, pode nos ajudar a pensar esses debates de uma maneira mais consistente e segura. Em linhas gerais, o artigo versará sobre a questão da representação dos imigrantes considerados “indesejados” na década de 20 no Brasil, mormente os negros norte-americanos e os japoneses.
Na introdução o autor começa por fazer um breve apanhado do conjunto de políticas diplomáticas que o Brasil adotou desde meados do século XIX até o primeiro quartel do século XX, no sentido de um controle imigratório que privilegiasse raças consideradas “desejáveis” em detrimento de raças ou grupos imigratórios “indesejáveis”. A diplomacia se esforçava por construir no estrangeiro uma imagem positiva do Brasil a fim de se obter a mão de obra que “faltava”, dada a nova configuração de mão de obra, neste momento já livre, pois a escravidão já havia sido extinta.
A suposição corrente era de que no Brasil não existiriam conflitos sociais e raciais, o que seria positivo para o conjunto de imigrantes que, a exemplo dos europeus, para o Brasil aportavam com a perspectiva de refazerem suas vidas. Porém, como o autor salienta, a realidade é que esse esforço brasileiro, em uma primeira análise, se orientava dentro de uma perspectiva de branqueamento que excluía do processo imigratório a possibilidade de negros e asiáticos, por exemplo, usufruírem do direito à vinda ao Brasil. O autor se pergunta então quais eram os fundamentos reais dessas políticas, o que orientava e dava formas às representações do “indesejado”, porque da exclusão de raças “indesejáveis”, ou ainda, como e por quais razões determinados projetos de imigração envolvendo esses grupos foram duramente criticados no Brasil.
Ramos elege como eixo de análise especifico os desdobramentos de um caso ocorrido em 1921, envolvendo o projeto de um grupo de afro-americanos de se instalarem no Brasil. No primeiro capitulo, “Os limites do paraíso racial”, o autor escreve que, nos anos 20, a campanha brasileira para atração de mão de obra está a circular nos Estados Unidos, acabando por ser veiculada também em parte da imprensa negra. Os atrativos oferecidos chamaram a atenção de um grupo de negros norte-americanos de Chicago, que decidiram comprar terras no Mato Grosso, fugindo das leis racistas vigentes nos EUA.
Porém, essa iniciativa sofreu séria resistência no Brasil. A imprensa brasileira alardeou o caso, sustentando um suposto plano do governo norte-americano de enviar o seu contingente populacional negro para o Brasil, o que, na opinião da época traria prejuízos às tentativas de branqueamento da população brasileira. Surge então a pergunta: o que estava efetivamente por trás da recusa à imigração desse grupo? O autor sugere que outro motivo possível, além da ideologia do branqueamento, seria o de que a vinda dos afro-americanos traria consigo o ódio racial ao Brasil, que era considerado um lugar sem conflitos raciais.
  Para além da “opinião pública”, o debate sobre este projeto também teve repercussão no Congresso Nacional. Em função desse episódio, alguns parlamentares propuseram leis restritivas a qualquer tentativa de imigração negra para o Brasil. Essas leis não atingiriam apenas os negros, mas também os “amarelos”. Apesar da acolhida e dos debates no Congresso, essas leis não foram aprovadas, o que obrigou que as restrições se realizassem pela diplomacia. O autor considera esses projetos de leis, mesmo não aprovados, importantes para se apreender as representações dos negros norte-americanos como indesejáveis. A hipótese do autor é de que o maior temor seria o de que a importação do “ódio entre as raças” ameaçasse o controle social que a República se esmerava por manter, ainda que sob a premissa da superioridade branca e da submissão e subordinação dos negros.
No capítulo seguinte Ramos faz uma acurada análise de um inquérito elaborado em 1925 pela Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), que respondia a uma demanda das elites e dos setores rurais no sentido de sua posição difícil do ponto de vista da mão de obra no Brasil, que era considerada insuficiente e mal preparada. Na realidade, salienta o autor, a preocupação principal tinha mais a ver com um ideal de trabalhador, preferencialmente branco, europeu e “civilizado”, em detrimento das “raças inferiores”, negros e asiáticos. O estímulo à imigração branca traria resolução definitiva também para os problemas agrários do Brasil. Porém, havia uma série de dificuldades, tal como apontadas por Ramos em sua análise, para a atração de mão de obra branca, restando a alternativa à imigração japonesa.
O capítulo subsequente, “O debate sobre a imigração japonesa”, discute a polêmica envolvendo a imigração de japoneses e o simbolismo presente nas representações dessa população enquanto “indesejável”. Uma das objeções correntes era a de que o japonês seria inassimilável e poderia corromper o funcionamento da política eugênica em curso no Brasil. Os debates ocorriam também dentro da própria SNA, que tinha, contudo, opiniões divergentes entre seus membros sobre a questão do japonês. A disputa, que também ocorria no plano jurídico, permeou os debates e as representações dos “indesejáveis” durante esse período.
            O penúltimo capítulo fala sobre as diferentes posições acerca da imigração de negros e japoneses com base nas respostas ao inquérito do SNA. O autor aponta uma “lógica” das diferentes posições, que tinham em comum a identificação de três categorias que davam subsídio tanto às posições de rejeição quanto de aceitação. Essas categorias eram as de eugenia, civilização e assimilação.
            A primeira categoria se referia ao grau de eugenia dos povos imigrados. Para tal ponto de vista a imigração era um instrumento de regeneração da raça, ao introduzir uma população branca no Brasil. A segunda categoria se referia ao grau de “civilização” do imigrado, que era medido pela importância do país de origem do imigrado e pela associação “de povo imigrado” a uma disciplina para o trabalho, técnicas de produção, higiene e respeito à ordem legal. A terceira categoria era a de assimilação, no sentido de se deixar assimilar ao meio, à cultura e ao povo brasileiro.
            Para o autor, os temores eram muitos. A possibilidade de não-adaptação ou inassimilação, o conflito entre raças, considerado inexistente no Brasil. No caso dos norte-americanos, temia-se que um “comportamento agressivo” por parte dessa população pusesse fim à harmonia racial então supostamente vigente. O autor sustenta que, para além da suposta inferioridade racial dos negros norte-americanos a preocupação principal fundamentava-se na possibilidade de que não se “fundissem” ao “trabalhador nacional” e à “cultura brasileira”.
            No último capítulo do artigo, “Raça e imigração na Primeira República: a busca do ponto de mistura”, o autor argumenta que os debates sobre imigração e raça giraram em torno da possibilidade de “contribuição” a uma “mistura” física e cultural que redundaria na construção de um idealizado “tipo brasileiro”. O fundamento do conjunto de representações decorrentes da busca e construção desse ideal, de acordo com Ramos, estava no aumento do número de brancos. A consequência desse tipo de política racial foi a classificação de determinados grupos com base em hierarquias raciais que acabavam por impor desde a negatividade até a positividade extremas desses grupos, como os negros e os japoneses. O risco principal era de que à imigração de raças “indesejáveis” pusesse fim à harmonia entre as raças e aos pressupostos que fundamentavam a hierarquia racial e por conseguinte social, política e econômica decorrente dessas premissas.
            O artigo de Jair de Souza Ramos se configura em trabalho muito interessante para se pensar questões importantes da contemporaneidade. Além do rigor documental, da precisão e fluidez da escrita, as reflexões propostas pelo autor nos guiam e dão subsídios para alguns dos debates mais prementes, como a questão sempre corrente e atual do racismo, tanto no Brasil quanto e outros países; a ascensão de sentimentos e movimentos xenófobos em praticamente todo o planeta; os diversos conflitos de matriz étnica; enfim, a questão das identidades e da alteridade, tão cara ao pensamento contemporâneo.
            De um ponto de vista historiográfico fica evidente o domínio do tema e a desenvoltura do autor na exposição de temas muitas vezes considerados “espinhosos”, dado seu caráter polêmico, e a maneira como maneja as informações em um texto bem construído e coerente do ponto de vista argumentativo. Outro fator elogioso neste trabalho é a possibilidade de análise sempre muito rica em torno do conceito de representação. O texto tem como um de seus fundamentos a questão representacional na história e de como determinados grupos e/ou sujeitos históricos são esteorotipados e de como se constroem discursos com base nessas representações que constroem e legitimam hierarquias raciais, instituindo e definindo o Outro com base nos valores do Eu que não realiza o necessário “exercício de alteridade”. O artigo se configura leitura indispensável para pensarmos nossos dilemas e problemas contemporâneos.

RAMOS, J. S. Dos males que vêm com o sangue: as r. In: Marcos Chor Maio; Ricardo Ventura. (Org.). Raça, Ciência e Sociedade. 1 ed. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1996, p. 59-84.

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